Em “1968 – Um ano na vida”, documentário escolhido para abertura do 28º. Festival Internacional de documentários – “É tudo verdade/ It´s All True”, o cineasta Eduardo Escorel se debruça na intimidade de sua irmã, Silvia Escorel que, por sua vez, narra suas memórias e percepções acerca do histórico ano de 1968 no Brasil.
Documentário interessantíssimo que tem como base as memórias de Silvia sobre o ano de 1968, conhecido como “o ano que não terminou”, ano de extrema e violenta movimentação política/histórica, marcado pela Guerra do Vietnã, enormes manifestações estudantis mundo afora (aqui no Brasil, marcadas pela morte do estudante Edson Luis em um confronto entre estudantes e a Polícia Militar e Sexta feira sangrenta – embate entre movimento estudantil e militares que resultou em diversos números de mortes), passeata dos Cem mil, assassinato de Martin Luther King Jr., eleição de Richard Nixon à presidência dos Estados Unidos, decretação do AI5 – Ato Institucional número 5, que deu início ao período mais violento da ditadura militar.
Se por um lado temos um cenário sociopolítico historicamente conturbado e violento, por outro temos a leveza de Silvia, que contrapõe os acontecimentos catastróficos com sua honesta percepção – ou falta de – para os fatos – filtrada por sua alegria e desembaraço para a vida. Silvia assume que não sabia o que queria fazer da vida, que ao invés de arrumar um emprego como seus pais insistiam, preferia fazer colagens em seu caderno/diário, documentando os acontecimentos.
A honestidade com que Silvia se coloca perante os fatos que marcaram o ano de 1968 é o que garante a presentificação do contraste proposto por Eduardo Escorel, que ressalta constantemente a gravidade dos acontecimentos históricos. O paralelismo entre a percepção de Silvia e os fatos torna o documentário uma ótima experiência.
Sim, apesar de estarmos falando de um ponto de vista de extremo privilégio perante um todo global, o que garante que o documentário extrapole uma bolha específica é justamente a honestidade de Silvia perante os acontecimentos à sua volta e também sobre sua evolução existencial – que nos convida à reflexão acerca das mudanças que acontecem conosco – consciente e inconscientemente. Ainda que “perdida” por vezes, ela explora sua existência e se molda, de forma que acompanhamos o desabrochar – seu e de sua feminilidade – uma mulher segura de si e de suas convicções.
Se casou a contragosto do pai – o importante embaixador Lauro Escorel Rodrigues Morais – com o cineasta Luiz Carlos Saldanha que era considerado pelo patriarca como bohemio demais), e de quem, para desespero maior ainda do pai (diante do posicionamento conservador acerca do divórcio) – se desquitou anos depois. Se apropriou de sua própria imagem, parou de alisar os cabelos, se explorou sexualmente, tentou diversas profissões; tudo isso enquanto participava ativamente do cenário político social, em meio à uma época de machismo, opressão e cerceamento de direitos imensuráveis.
Hoje, renomada, talentosa e sempre articulada escritora, revela suas memórias através das cartas que escrevia a Eduardo Escorel, diretor do filme e seu irmão mais novo, e também de suas ótimas e divertidas colagens em seus cadernos. O filme é baseado no livro “Lost” escrito por ela, que, pelo título, já acusa a honesta e corajosa análise que faz de si mesma em meio ao extremo caos. Ainda e por fim, o documentário se valida pela ótima abordagem narrativa histórica/social acerca de um dos períodos nacionais mais sombrios de nosso país, que ecoa até os dias de hoje. Para ver sem falta.
Ficha Técnica