A narrativa em primeira pessoa não é novidade mesmo quando o protagonista é o vilão. Fugir da empatia que uma narrativa assim acaba por nos impor é um grande desafio. E é justamente no complexo exercício de uma controversa empatia que reside o principal trunfo de Você. A trama gira em torno de Joe Goldberg (Penn Badgley), um carismático gerente de livraria que retroalimenta sua sociopatia com o que ele entende por amor e proteção, a partir de seu primeiro encontro com com Guinevere Beck (Elizabeth Lail), aspirante a escritora e repleta de frustrações pessoais majoritariamente femininas.
Você é uma das sérias mais provocativas que eu já vi. Isso se deve à soma de um roteiro poderoso, uma direção caprichada, uma fotografia folhetinesca e atuações impecáveis, tudo baseado no livro homônimo de Caroline Kepnes. Joe nos mostra aos poucos sua personalidade, sua frieza, sua inteligência e, principalmente, seu senso de superioridade, que define sua relação com os outros à sua volta. Conhecemos em primeira mão a sua bela retórica, que funciona como armadilha moral para julgarmos suas ações. Além do carisma do personagem (graças à maravilhosa construção e atuação de Penn Badgley), também entram na equação uma possível capacidade de se importar com jovens que sofrem abusos de outrem – caso de Paco na primeira temporada e de Ellie, na segunda. O roteiro parece cair na tentação de colocar o comportamento de Joe sempre em perspectiva quando retrata o padrasto espancador de Paco ou mesmo o predador sexual Henderson. Ao mesmo tempo, o roteiro também é responsável por chamar os mais distraídos de volta à Terra e mostrar que, independente das “boas” intenções, Joe é um assassino.
Se na primeira temporada Joe se vê torturado pelo objeto de sua obsessão que pode traí-lo a qualquer momento e ele tem uma antagonista à altura na também abusiva Peach Salinger (Shay Mitchell) – melhor amiga de Beck – na segunda temporada ele não chega a ser efetiva e psicologicamente desafiado. Mesmo tornando-se caça em determinado ponto da narrativa, Joe lida apenas com traumas pessoais e com a própria ansiedade para prosperar com seu novo “amor”, Love (Victoria Pedretti). Os flashbacks ganharam espaço para explicar a relação de Joe com as mulheres, o poder e o sexo. Infelizmente, perde-se a chance de dar o mesmo destaque para o sofrimento que o vilão causara a Candance (Ambyr Childers), sua ex-namorada. Um arco que poderia ser melhor explorado para evitar possíveis acusações de romantização da sociopatia, mas mal percebemos porque estamos fascinados com a dinâmica da complexa codependência dos gêmeos Love e Forty (James Scully).
Cada temporada tem dez episódios e ambas são muito bem finalizadas com cliffhangers surpreendentes e bem lançados que deixam o futuro aberto ao mesmo tempo que concluem as respectivas tramas com um pitadas oportunas de sadismo. Tenho dúvidas se uma terceira temporada seria bem sucedida depois desta conclusão ou se seria necessário um malabarismo exagerado para manter a alta expectativa. Esta segunda alternativa pode se mostrar um grande erro pois, para mim, o mais interessante da série está nos personagens críveis, honestamente falíveis (nem com toda sua inteligência os crimes de Joe podem ser considerados “perfeitos”) e que estão – como nossa geração- sujeitos às novas relações sociais construídas via web e sob os holofotes individuais da cultura do self exposure. Arrisco até a dizer que o stalking ganhou um lamentável conceito elástico de acordo com as experiências de cada um o que faz com que cada reação seja praticamente única frente às provocações da série que aposta claramente na atração que temos por certos aspectos da escrotidão humana. Enquanto alguns podem achar a série um desserviço pela sociopatia, acredito que o debate dessa volátil linha de valores vale a audiência.
Eu fiquei tão impactada com a primeira temporada, no início de 2019, que eu sequer queria conversar sobre a série. Parecia errado ter gostado tanto. Como essa trama sobre relacionamentos abusivos em tantas camadas podia ser tão fascinante? Como esse vilão poderia soar tão crível e, pior, como suas crueldades podiam suscitar qualquer empatia? Como eu poderia admitir publicamente que, se o encontrasse, eu certamente cairia de amores por esse cara machista e manipulador que parecia tão normal? Sentiu o drama? Ponto para Você.