AVISO AOS QUE NUNCA VIRAM A SÉRIE – ESTE TEXTO POSSUI *SPOILERS*
Adaptação do romance homônimo de Margaret Atwood escrito em 1985, a primeira temporada de O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale no original) estreou via streaming no Hulu em 2017 e logo tomou o mundo de assalto retratando uma América do Norte distópica onde o fundamentalismo religioso toma o poder de parte dos Estados Unidos e cria Gilead.
Em meio à várias crises sociais, econômicas e climáticas, o mundo se vê em meio à uma epidemia de infertilidade que reduz a números ínfimos a taxa de natalidade da população. Esse novo governo teocrático enxerga a solução para todos esses problemas na retomada de valores ultra conservadores e na divisão da sociedade em castas com papéis bem específicos para cada uma delas. Para eles, o sucesso de Gilead e a salvação da humanidade dependem do cumprimento desses papéis e lançam mão do autoritarismo e da opressão extrema como as únicas ferramentas para garantir esse ordenamento.
Na primeira temporada somos apresentados a esta sociedade recém criada porém já estabelecida. São pessoas que ainda tem consciência do mundo exterior e do passado pré-Gilead. A história é contada na primeira pessoa pela Aia Offred, uma mulher em torno dos 30 anos na verdade se chama June e que foi capturada e separada de sua família quando tentavam fugir para o Canadá.
A apresentação de um mundo fictício que metaforicamente nos coloca de cabeça no mundo real
Depois de passar por um rigoroso treinamento, que vai de lavagem cerebral à tortura, ela foi entregue a uma família de alto escalão onde sua única função é gerar um filho no lugar da esposa infértil. Para isso, as Aias se submetem a uma cerimônia mensal que mistura estupro a um rito religioso que, com a participação da esposa, remete à história bíblica de Raquel e Jacó.
A narração oscila entre o presente de Offred e o passado de June, fornecendo aos poucos as peças para montarmos o quebra-cabeça para entendermos como se deu a transformação radical de toda essa sociedade marcada pela total nulidade da mulher como ser pensante. Independente da casta, a todas as mulheres é proibido ler ou escrever e as Aias são aquelas que além de tudo ainda perdem seus nomes, tornando-se assim apenas “úteros com pernas”.
A narrativa é brutal, recheada de extrema violência física e psicológica. Em vários momentos é perturbador acompanhar o raciocínio da protagonista orbitando entre a resignação, a solidão, a saudade, a culpa, a humilhação e o sofrimento. O brilhantismo do roteiro – e esse mérito é todo de Atwood ao escrever o romance – está nas migalhas de esperança distribuídas ao longo da narrativa e que servem de gancho para o episódio seguinte.
A forma como o poder foi tomado pelos fundamentalistas, sua estratégia e seu sucesso invariavelmente conduzem à reflexão e é impossível não se pegar comparando ficção e realidade: antifeminismo, suspensão de direitos, homofobia como aberração, escravidão, interpretação literal da bíblia – mais especificamente do controverso Antigo Testamento – conforme a conveniência do governo e por aí vai.
Não é coincidência associarmos essa distopia àquela retratada em 1984 de George Orwell, ou mesmo pensarmos na sociedade iraniana pós revolução 78 pois ambos serviram de inspiração para Atwood para escrever o romance.
A segunda temporada e o flerte brutal com a conjuntura atual nos EUA e no mundo
Se os eventos da primeira temporada servem para nos apresentar essa sociedade e nos inserir nos conflitos de June/Offred, é na segunda que a trama se aprofunda e fica ainda mais violenta e obscura. A narrativa sai por vezes da primeira pessoa e nos deixa acompanhar os acontecimentos longe de June/Offred, no Canadá, onde estão os refugiados, e nas colônias, onde estão as não-mulheres.
Mais peças do quebra-cabeça aparecem para preencher o arco de outras personagens. O pior de Gilead é revelado e, como que construindo sua própria divina comédia, Offred também precisa passar pelo inferno antes de se reerguer. É uma fase ainda mais perturbadora do que assistir à primeira “cerimônia”.
É também na segunda temporada que o flerte com a vida real se intensifica. Os direitos foram adquiridos pela Hulu em meio à onda conservadora que se estabeleceu na Europa e antes da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. No entanto esta segunda temporada já tem muito dessa nova realidade mundial. Famílias separadas nos aeroportos e mulheres alinhadas para enforcamento são algumas referências a recentes acontecimentos reais nos Estados Unidos.
A série nitidamente se propõe a nos oferecer um recurso visual para exemplificar o pior de um futuro não tão distópico assim, não só na América. Ou vai me dizer que você nunca pensou em Serena Joy quando vê uma mulher se declarando antifeminista? Ou na Tia Lídia quando vê nossa atual Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos? Eu não só penso como ainda respondo: under His eyes.
É mais um caso de uma adaptação televisiva que não deve nada ao original literário. A série é poderosa em sua linguagem e isso faz com que seja um drama complexo que jamais poderá ser reduzido à mera panfletagem feminista ou anti-totalitarista.
A terceira temporada estará disponível via streaming pelo Hulu a partir do dia 05 de junho.