Desde que a Fox foi comprada pela Disney, muito se especula sobre o destino dos filmes de super-herói no universo cinemático que a Marvel arquitetou no cinema desde 2008, em especial os X-Men, o grupo de heróis mutantes que é um dos mais populares desse universo das HQs e que abriu as portas de Hollywood novamente para este gênero de filme.

Na última franquia dos X-Men na telona, iniciada por “X-Men: Primeira Classe” (2011), a Fox tentou construir algo semelhante mas focado apenas neste grupo de heróis que se resumiu a quatro filmes, e que pode nos ajudar a vislumbrar o que pode ser realizado – e o que não deveria ser realizado – no futuro dos heróis mutantes no MCU.

Em “X-Men: Primeira Classe” o diretor britânico Matthew Vaughn estabeleceu uma inserção da discussão da inserção mutante na sociedade – uma metáfora bem construída nas HQs para a questão do debate do identitarismo na vida real – com base no elo entre um acadêmico pertencente dessa ala identitária mutante (Charles Xavier) que possui ambição da integração dos mutantes à sociedade como um todo, e um justiceiro também pertencente a essa ala identitária (Erik Lensherr, vulgo Magneto) que caça os nazistas que acabaram com sua família e ao longo da franquia confronta se essa busca por vingança não era apenas uma das máscaras para o radicalismo que se opõe ao preconceito humano ao mutante.

E o encontro de ambos – e o confronto de suas convicções – é o combustível por trás do combate de um grupo mercenário também mutante – a Irmandade Mutante – que busca lucro e, na consequência dos seus atos, a completa dominância mutante na sociedade, extinguindo a vida humana como algo inferior, se portando como predadores. Ou seja, no ato final do filme o elemento em disputa – que representa parte dessa sociedade mutante que vive na marginalidade deste convívio – é o indivíduo Magneto, que em suas dúvidas reside parte do elemento dramático deste filme, e de toda a franquia.

Vaughn estabelece vários links com causas de gênero (na personagem Raven, entre se revelar ou viver “no armário” de sua habilidade mórfica), raciais (um breve olhar de cumplicidade entre Angel e Darwin na cena onde o vilão coloca dúvidas sobre aqueles jovens serem agentes cegos em nome de finalidades governamentais através da CIA) e até mesmo deficiência física (caso de Hank McCoy e a sua busca por uma forma de esconder seus pés esteticamente feios mas de utilidade evolutiva – e o que essa busca acarreta, na sua transformação em Fera).

No fim deste filme fica delineado o que seria aquele universo X-Men se fosse seguida realmente o arco dramático bem construído naquele filme, se não fosse a reinserção de Bryan Singer – diretor de dois dos três filmes da franquia anterior dos X-Men no cinema – como agente autoral deste universo, que se estende nos dois próximos filmes, “X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido” (2014) e “X-Men: Apocalypse” (2016) e que é caracterizado por um apego desnecessário à trilogia anterior, com a utilização da viagem temporal como subterfúgio para corrigir o péssimo desfecho daqueles filmes anteriores e, ao mesmo tempo, dar sequência ao bom arco dramático montado em “X-Men: Primeira Classe”.

Do filme de Vaughn ficou apenas a contextualização histórica daquele momento dos mutantes com a linha histórica estabelecida em “X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido”, e mesmo assim como um tom cômico de adequação de um personagem pouco sociável (Wolverine) a uma sociedade que experimentava liberdades e protestava contra conflitos.

O foco central mesmo se coloca em cima do determinismo de decisões e opções dentro do debate político social sobre o mutante na sociedade, através do legado de dois ideólogos (Xavier e Magneto), cada um com sua prática militante e estratégias de inserção/resistência, sobre uma agente política confusa e em disputa nesse debate, Raven – cuja ação individual e puramente instintiva desencadeia a extinção dos mutantes no futuro.

O que há de mais interessante neste segundo filme, por mais que haja um bom subtexto na descrição acima mas que é pouco desenvolvido em detrimento da ação do protagonista Wolverine em impedir o ato em si, é a maleabilidade da política frente a desvios de rumos na tática adotada, seja Magneto tentando assumir o protagonismo da defesa do futuro da causa mutante da forma radical que lhe é peculiar, tentando matar Raven antes dela cometer seu erro, ou pelos rumos que a estratégia militante de conciliação proposta por Xavier acaba causando nos filmes posteriores, após o acerto desta questão temporal.

E o drama se centra especificamente em Charles Xavier quando “X-Men: Apocalypse” aborda a questão da divindade e da fé em diferentes formas e estéticas, de acordo com o contexto histórico. O vilão Apocalypse ressurge ao mundo como um profeta que determinaria a evolução radical das espécies através da eliminação da população humana, e sua postura coloca em evidência o quanto Xavier, após o sucesso na prevenção deste ataque, acaba se tornando ele próprio um esquete vaidoso dessa figura ao alcançar a conciliação institucional no filme posterior, “X-Men: Fênix Negra” (2019).

Apesar de não ter a profundidade e o carisma que o MCU construiu em Thanos sob a mesma estratégia de dizimação humana em nome do equilíbrio, o discurso de Apocalypse é o mesmo se olharmos atentamente suas falas dispersas e diluídas sobre o endeusamento das armas, do capitalismo, do consumo ao longo do tempo, e o quanto ele, Apocalypse, entende isso como limitação evolutiva (o que é sedutor sob uma perspectiva crítica de nossa sociedade atual, mas sob o prisma errado da opressão autocrática).

“X-Men: Apocalypse” apesar de apresentar esse ótimo subtexto apenas arranha-o na esquemática desenhada por Singer da ação pela ação, e pela apresentação de personagens populares para a maioria dos espectadores ainda jovens, mas que trazem novas e tímidas nuances às questões identitárias já apresentadas em outros personagens da franquia – e que “X-Men: Fênix Negra” acaba focando em uma delas, a questão do feminismo através do desabrochar da adolescente dominada Jean Grey na mulher que alcança o domínio sobre o próprio destino e seus desejos através do fenômeno cósmico da Fênix Negra (e influenciada pela frieza do raciocínio radical feminista da vilã alienígena, um dos pontos fracos do filme pela sua artificialidade e função nesta problemática toda).

Este último filme, que é a primeira experiência de um dos produtores e roteirista na direção (Simon Kinberg) afunda ainda mais o que importava por trás do debate mutante na sociedade ao colocar como solução ao desabrochar de Jean um retorno às raízes ao apego dominante masculino representado aqui pela “família” que ela escolheu, na figura de um Charles Xavier que conserta erros graves de conduta na liderança de um movimento social sem aprofundar muito o balanço do que aquilo realmente representou para a causa como um tudo – fragmentação, falta de foco e atraso nas evoluções de inserção mutante na sociedade.

E por fim podemos também lamentar a forma que relegam Magneto, o outro lado do movimento identitário que merecia também uma evolução desde o primeiro filme, e que se torna um coadjuvante aprisionado nos próprios traumas e no ciclo de práticas derrotadas, sem torná-lo uma alternativa ao método conciliatório na política social através de militância organizada e armada, que era o que se avizinhava ao fim de “X-Men: Primeira Classe” e que é podado na elipse entre este filme e o posterior.

Talvez a Marvel opte por aproveitar esse elenco e parte do que foi construído nesta última quadrilogia para inserir os X-Men no MCU através das consequências da batalha contra Thanos e seus efeitos na linha temporal. É um universo onde a força desses heróis mutantes sempre foi essa questão identitária e a postura adotada ao longo da linha do tempo destes mutantes nas HQs, e é uma linha mais próxima ao que foi realizado pela Marvel em “Pantera Negra” (2018) do que tentaram realizar em “Capitã Marvel” (2019).

Com o lançamento da Disney+ no mercado do streaming, não seria má idéia abordar este universo dos X-Men no formato de série e aos poucos inserindo seu universo nos cinemas de alguma forma, pois o universo mutante é amplo e com discussões muito profundas e atuais que podem ser levantadas com mais tempo e cuidado numa série, principalmente se quiserem novamente retratar uma origem a esse mundo no MCU. Os X-Men são uma oportunidade única para o MCU saltar do excesso de pasteurização da aventura e humor nos seus filmes a algo mais potente e desafiador como o fim de sua última fase no cinema.