“Benedetta” (2021), de Paul Verhoeven
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Onde: Cinemas

 

O versátil e polêmico diretor holandês Paul Verhoeven não mede esforços para contar a história intrigante, sensual e fascinante da noviça Benedetta Carlini (1590-1661), que envolve a igreja católica num emaranhado de moralidade duvidosa, libidinagem e falsa crença. Para céticos e espectadores desavisados soaria blasfêmia, o que não é. Já que está tudo documentado, o diretor quis fidelidade ao livro de Judith C. Brown, que fez a biografia da freira, e conta ainda com pesquisa imensa.

Verhoeven acerta em não focar apenas na dicotomia da freira, fazendo assim sua obra ser ampla. Ele escolhe mostrar como a igreja católica lidava com a sociedade em geral, com suas questões políticas de imposições severas. O diretor assevera a divisão dos trabalhos de noviças, o sexismo tóxico, exagerado e destruidor dentro da abadia. Ele mostra também como a comunidade cristã recebia aquele que tinha as chagas de Cristo, e que assim conseguia emular conversas e visões reais com o próprio Cristo. Curioso o fato de tal pessoa ser uma mulher. Aqui em “Benedetta”, observa-se a dramaturgia de Verhoeven flertando com um machismo inquietante em que a freira – mesmo num convívio social incrivelmente religioso – tinha de lutar graficamente com seu corpo para mostrar e provar que ela realmente recebia tais chagas do salvador. Blindando desta forma, de maneira aceita, seus desejos mais íntimos.

Ainda assim, naquela Toscana do século XVII, na cidade de Pescia, Benedetta Carlini, empática, caridosa e piedosa foi posta em cheque e inquirida por uma sociedade que se dividia da seguinte forma: uma parte queria acreditar no milagre divinal da noviça e a outra parte sabia que ela poderia simular o “toque” com o supremo apenas para ludibriar os homens da alta graduação da igreja e subir de posto em sua abadia. Nesta frase mora um tanto do cinema de Verhoeven: “Instinto Selvagem” (1992), “Showgirls” (1996) e “Elle” (2016), por exemplo.  Tudo isso serviria para camuflar os desejos reprimidos da freira, mas que eram postos em prática em quatro paredes, sempre vigiados pela abadessa cética e voyeur. Observações devidamente registradas que entraram para o livro biográfico da noviça. Daí o imediatismo chocante e cheio de detalhes sórdidos.

Na dissimulada Abadia

Seguimos a história da menina Benedetta Carlini, que bem nova já conversava com o sagrado, sabia manipular, era persuasiva e flertava com o possível fingimento necessário para aquele mundo tão masculino e opressor. Assim, ela se destacava, ganhava afagos e carinhos. Todas estas características se tornam mais visíveis quando Benedetta já é uma mulher e mora na abadia de Pescia (interior da Itália). A atriz Virginie Efira comanda a tela. Passamos a acompanhar sua inusitada relação com a noviça recém-chegada, Bartolomea (a também formidável Daphne Patakia). Aqui a construção de personagem de Paul Verhoeven se aproxima do texto base da obra: Benedetta vende seu olhar curioso e caridoso, ludibria, se impõe, dissimula e convence. Ela se aproxima cada vez mais de seduzir o alto grau da igreja católica a fim de mostrar o que tinha em seu corpo.

O que confunde magistralmente o espectador, que nunca se preocupa em saber de fato se Benedetta teria realmente tais marcas ou não, é que a noviça utiliza esse processo para sobreviver. Pois boatos fortemente de repulsa e asco da cúpula dirigente da abadia em Pescia e em Roma (com o Papa) começam a surgir dando conta de que ela mantinha relações sexuais com a nova freira, Bartolomea. Sendo então, o primeiro caso lésbico do catolicismo a ser propriamente registrado. Obviamente, com tais dúvidas, ela seria julgada inúmeras vezes. Não se sabia se o testemunho dela sobre Cristo seria o suficiente para torná-la santa e salvá-la.

O claro castigo imposto aqui a Benedetta – durante toda sua trajetória de vida – está muito acima do interesse da Igreja: de ser ou não real o fato das chagas. A libertinagem de Verhoeven segue explícita aqui. Não acho uma blasfêmia. Sim, ele sobrecarrega o imagético. E é por essa cristalina e imperdoável sexualidade, inclusive masculinamente violentada por meio de um objeto que não citarei aqui, é que a noviça segue sabatinada e punida severamente. Sua escolha e sua persona respondem até o esgotamento do filme, mesmo que descubramos eventos piores cometidos por dirigentes (homens) da Igreja (maiúsculo aqui). Ela sempre seguiu convicta, mas jogada de lado e despedaçada pelo divino que um dia a abraçou.