MARVIN GAYE - YOU'RE THE MAN
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ÁLBUM PÓSTUMO DE MARVIN GAYE CONTINUA ATUAL 

Lançado no começo do mês passado, “You’re the Man”, de Marvin Gaye, aborda temas que ainda hoje, em pleno século XXI, continuam sendo atuais, apesar de ter sido gravado em 1972. Aliás, para se entender porque só possamos conhecer este trabalho agora, precisamos voltar um pouco no tempo.

Gaye já era um artista consagrado e tinha atingido aquilo que muitos querem e poucos conseguem: sucesso de público e reconhecimento da crítica. Mas o problema é que ele vinha tendo, já há tempos, problemas com o dono de sua gravadora, Motown.

Berry Gordy Jr. tinha duas paixões: música e dinheiro. Começou nos anos 1950, compondo alguns hits de r&b (para quem não sabe, “Money – That’s What I Want” , gravada pelos Beatles em 1963, foi composta por ele) e achava que estava sendo passado para trás na hora do recebimento dos direitos autorais. Foi quando ele resolveu montar seu próprio selo, onde ele poderia controlar toda a cadeia de produção musical – ele se preocupava inclusive com o visual e coreografias de seus artistas.

E foi dentro deste cenário que os atritos entre Gaye e Gordy começaram a florescer: o dono da gravadora, que tratava seus artistas contratados como funcionários, tinha concepções artísticas muito bem delimitadas: músicas de amor juvenil, um pouquinho (mas bem pouquinho, mesmo) de malícia, refrões bem marcados, tudo isso envelopado em músicas de até três minutos, boas para tocar no rádio.

Pois bem, final dos nos 1960 e começo dos 1970, com o levante do movimento negro americano, na luta por direitos iguais para negros e brancos, a guerra do Vietnã, o florescimento hippie, tudo isso fez emergir em Marvin Gaye uma nova percepção: havia outras coisas para se cantar. Em 1969, gravou o hit “Abraham, Martin & John”, uma homenagem a quatro americanos assassinados: os presidentes Abraham Lincoln e John Kennedy, Martin Luther King e Robert Kennedy. Apesar do sucesso, Berry reclamou: “Marvin, essas coisas estão indo longe demais”.

Para complicar a situação, a vida pessoal de Marvin Gaye estava indo pro buraco: dependente de cocaína, casado com a irmã de Berry (ser cunhado do chefe não deve ser uma boa ideia, imagino) e infeliz, ele chegou a tentar o suícidio neste período. Foi salvo pelo sogro.

Depois disso, ele decidiu mudar ser visual: a barba cresceu, furou a orelha, passando a não se enquadrar no código visual estabelecido pela gravadora. Em 1970, inspirado por um relato de violência policial, veio “What’s Going On”, a música. Berry ODIOU a música, mas Marvin Gaye contou com as vistas grossas do gerente de vendas da gravadora, que tratou de distribuir o single que, abrindo as portas para o sucesso do álbum homônimo: o novo Marvin Gaye continuava cantando músicas de amor, mas também protestava contra a violência policial contra negros, contra a guerra do Vietnã e abordava um tema até então despercebido: o meio ambiente.

O álbum “What’s Going On” foi um enorme sucesso e Marvin Gaye embarcou em seu novo projeto, “You’re The Man”, em 1972. Mais uma vez, Gordy foi contra promover o single, com a canção que abre o álbum e, dessa vez, ele foi bem sucedido – o lançamento foi um fracasso.

No meio das tensões comerciais e familiares, Marvin Gaye decidiu, com a pronta concordância de Berry em engavetar o álbum. Na sequência, também encantado com os filmes da Blaxpoitation e de olho no sucesso que Isaac Hayes e Curtis Mayfield conseguiram com trilhas sonoras para filmes do gênero, Gaye lançou “Trouble Man”, mais outro grande hit.

E é justamente entre os sucessos de “What’s Going On” e “Trouble Man” que “You’re The Man” se encaixa. Um artista excepcional em um pico genial de criatividade musical, buscando estabelecer um novo padrão para a música negra americana e cercado de músicos não menos excepcionais.

Em uma comparação direta com o antecessor “What’s Going On” e com o sucessor (“Trouble Man”) não é melhor do que esses, mas está muito longe de fazer feio. É um disco excepcional. “You”re The Man – parts I&II”, a música, é uma sutil pedrada em Richard Nixon, o presidente americano à época: “demagogos e confessos odiadores de minorias nunca deveriam ser presidentes”, canta ele – parece que ele fala de alguns políticos de hoje em dia, não?

Impressionantemente atual na abordagem dos temas, Gaye continua. Em “The World is Rated X”, o assunto é a onda conservadora e a classificação de filmes utilizada nos Estados Unidos – um filme com classificação “X” significa perder muito dinheiro nas salas de cinema e ter como publico-alvo somente os fãs de pornografia. Se seu filme não é porn, isso significa prejuízo certo.

Mas a principal reflexão que o álbum me traz é: se Marvin Gaye estivesse vivo, “You’re The Man” não veria a luz do sol. Por mais que os conflitos com a gravadora fossem constantes, a decisão pelo não-lançamento foi feita pelo cantor. Até que ponto a vontade de herdeiros e executivos de gravadoras devem prevalecer sobre a decisão tomada por alguém que nem tem mais condições de protestar?