Onde ver: Netflix
8.5Nota da Hybrido
Votação do leitor 3 Votos
7.2

Um dos mistérios da humanidade é se nossos caminhos já são traçados por um destino divino, ou se existe o livre-arbítrio ao ser humano seguir o próprio caminho na vida, em busca de realização. Esse mistério é pauta de discussões, debates e de obras e mais obras que abordam o tema pelo aspecto dramático, e “O Diabo de Cada Dia” é um exemplo de abordagem cinematográfica da questão.

Campos opta por um universo que remete ao cinema épico e clássico, ao contar sua história através de gerações, onde cada detalhe é meticulosamente plantado para ser colhido mais à frente, o que é exige bastante concentração do espectador ao longo de mais de 2h de duração deste longa-metragem. E centra mais a evolução dramática antes e durante a vida de Arvin Russell, interpretado na vida adulta por Tom Holland.

O filme é narrado em off por uma figura que podemos julgar onisciente, e pelo universo do filme talvez até mesmo divina pelo perfil do texto, afinal descreve e julga as ações dos diversos personagens da trama em recortes temporais específicos – e que apenas no fim não define o que acontecerá pro futuro de Arvin, em defesa do livre-arbítrio.

O diabo em certo momento da história é definido no discurso do repugnante pastor interpretado por Robert Pattinson como uma figura ilusória que tira o indivíduo “do caminho certo que Deus lhe encaminhou”, mas que na verdade ilustra o instrumento de controle na oratória dos líderes de comunidade – e o tema fica ainda mais interessante com o sutil paralelismo ao poder semelhante no campo do controle do Estado através do ambicioso jovem policial que se torna um corrompido delegado ao longo da trama.

Além disso, a cruz é enquadrada na maioria das cenas, principalmente as mais intensas, numa clara correlação de como essa relação humana com o controle social através da divindade é realizada com intenções, como não existe um intermediário neutro entre aquelas pobres figuras e sua figura divina, e como Arvin na verdade confronta essa imposição da fé desde sua infância até o fim do filme, quando Campos coloca sua perspectiva sempre em oposição à personagens que falam em nome daquele símbolo da cruz (e não contra os que realmente abraçam os princípios da fé, como por exemplo sua avó e sua irmã adotiva).

Inclusive, em certo momento da história, o narrador sugere que a promessa não cumprida da avó de Arvin para seu pai voltar da guerra com vida (ele se casar com uma jovem da pequena cidade, que acaba se casando com um pastor fanático e eles geram a irmã adotiva de Arvin) poderia cobrar seu preço, mas Campos constrói uma contestação cinematográfica tanto na construção da relação sincera e amorosa dos pais de Arvin como na deturpada religiosidade que o pai de Arvin constrói em seu lar através de traumas de guerra e da violência inerente aos conflitos que o transforma em sua volta – e que ele passa ao filho.

Portanto o filme nos induz que o diabo de cada um na verdade são as próprias opções tomadas pelo livre-arbítrio que os conduzem à falência da sociedade ilustrada de diversas formas, seja com a grande maioria das personagens femininas sofrerem algum tipo de assédio, ou como os personagens traduzem a justiça divina através de atos de violência, e como estes atos se tornam mandamentos de convívio social da infância até a vida adulta em diferentes estágios – o que o filme impõe como mensagem central através da vida de Arvin e seu entorno.

A câmera de Campos em certos momentos nos parece tão incrédula do absurdo abraçado pela sociedade ali descrita ao, por exemplo, circundar personagens defendendo absurdos em nome da fé para mostrar a absorção literal do que é pregado ali pelos fiéis, ou quando coloca os personagens vis à espreita mesmo no enquadramento da cena, como o pastor observando a jovem fiel rezando no túmulo da mãe, como um lobo mau espreitando a próxima vítima.

A mise en scene ser construída dentro da vida rural no sul dos Estados Unidos confere volume dramático à cosmologia que envolve o poder divino e sua influência indireta na vida de indivíduos abandonados à própria sorte de suas próprias escolhas, conscientes ou ocasionais, do início ao fim do filme, e meras abordagens do contexto político da época em que se passa a história, entre guerras, mostra como na prática o que guia os homens é a fé na violência como solução de conflitos, e o subtexto mostra as vísceras podres que esse modelo constrói ainda hoje.