Filme-base: “Um Príncipe em Nova York” (1988), de John Landis
Muitos de nós referenciam o filme “Um Príncipe em Nova York” (1988) à nostálgica Sessão da Tarde da TV Globo, onde muitos de minha geração, enquanto jovens, víamos filmes leves dos mais variados gêneros ali, e aqui temos um exemplo emblemático dessa época.
Porém, uma revisão adulta desta comédia dirigida por John Landis e estrelada pelo então grande astro da comédia em Hollywood naquele momento, Eddie Murphy, nos traz bons valores a serem discutidos até hoje, o que não faz este filme ficar datado após 30 anos de seu lançamento nos cinemas.
Basicamente, a sinopse deste filme trata do príncipe Akeem (Murphy) que, após completar 21 anos e desafiando a tradição dos costume da fictícia nação Zamunda, decide que precisa viver a vida de fora da bolha da monarquia e adia seu casamento arranjado com o argumento de querer viajar e conhecer novos países – mas na verdade a viagem é o subtexto para Akeem buscar uma noiva que goste dele enquanto indivíduo, e não como figura institucional.
A chegada de Akeem nos Estados Unidos nos apresenta sutilmente a uma nova sociedade, que o atrai pelos conceitos de liberdade, mas que na prática se apresenta muito semelhante em seu tecido social, mesmo dentro do contexto de classe média do Queens, onde Akeem se instala e onde temos a família MacDowell como espelho de valores da sociedade norte-americana.
Num primeiro momento, Akeem tenta se encaixar nesses valores, sem perceber a mera reprodução dos mesmos valores que o afastaram de seus costumes em Zamunda, em outro contexto político e econômico. Se não existe uma monarquia autocrática nos Estados Unidos, temos uma pirâmide bem clara de status e aceitação guiados pelo sistema capitalista, raiz da sociedade norte-americana.
Não à toa Akeem se apaixona pelo braço social da família MacDowell, representado pela personagem Lisa (Shari Headley), que trabalha mais ligada às causas do bairro e da comunidade, mas o príncipe quase entra na lógica estadunidense ao suscitar se sua aparência não deveria seguir os ditames que o mercado impõe ser vencedora e atual, representada na campanha “Soul Glo” encabeçada pelo namorado de Lisa, Darryl (Eriq La Salle).
O núcleo negro de sua vizinhança, concentrado na barbearia com os personagens interpretados por Murphy e Arsenio Hall sob pesada maquiagem, faz o protagonista restabelecer seus princípios, relacionando o penteado à causa negra, e o quanto o penteado negro é tão bonito quanto o que o comercial deseja nos impor, e a utilização de Martin Luther King é didática nesse momento do filme.
O líder da família MacDowell, Cleo (John Amos), também reproduz conceitualmente as amarras do empreendedorismo embutido no conceito self-made man embutido nos valores protestantes de valorização do trabalho, e o referenciamento direto no Mc Donald´s, mesmo com a identidade do orgulho racial neste caso bem menos presente, mas referenciada também na imagem de Martin Luther King na decoração da sala dos MacDowell, não deixa de ser explícito de como o filme busca trazer as contradições entre uma monarquia africana e uma democracia baseada em valores rígidos de aceitação baseado em imagem e concentração de capital.
A forte representação negra no elenco naquela época é algo a ser valorizado, principalmente analisando o contexto em que este filme foi lançado, mais ou menos um ano antes do filme que é um tratado sobre o racismo, “Faça a Coisa Certa” (1989), de Spike Lee. Por mais que não aborde o centro nervoso da discussão do racismo, consegue fazer humor e deixar críticas principalmente nas falas de Darryl dirigidas à Akeem e à cultura africana em geral, sendo Darryl a personificação do negro colonizado para os interesses do capital.
Já na questão da relação dos americanos com estrangeiros, a chegada de Akeem e seu ajudante (Arsenio Hall) no Queens, que inverte perfeitamente os clichês da maioria dos filmes de Hollywood onde protagonistas brancos chegam a um local africano ou de outra cultura, só que aqui os africanos sofrem esses impactos clichês da cultura ocidental em território estrangeiro, sendo roubados e se vestindo de forma mais caricata possível para se “misturar” aos americanos.
Se “Um Príncipe em Nova York” fez muita gente rir e se divertir com as aventuras de Akeem em busca do amor verdadeiro, talvez seja o momento deste filme ser mais valorizado pelo seu conceito de representatividade negra no cinema hollywoodiano, e pelas boas discussões sociais que o filme pode nos trazer da melhor forma possível: através da comédia.
Onde ver: Netflix ou alugue na Cavídeo.
Obs: para quem quiser ler de forma mais aprofundada sobre alguns temas abordados, fica a sugestão da monografia de Jéssica Miranda Reis defendida na Universidade Federal de Viçosa (MG) – acesse aqui