Onde: Cinemas
Talvez o que impressione primeiro em ‘Eike – Tudo ou Nada’ é a escolha ousada para o comando do projeto. Andradina Azevedo e Dida Andrade, os diretores na função, são reconhecidamente cineastas do ‘cinema underground’ brasileiro, trabalhando sempre com orçamento irrisório, quase em esquema ‘ação entre amigos’. Premiados em Gramado tanto por ‘A Bruta Flor do Querer’ quanto por ’30 Anos Blues’, sua linguagem não agrada a todos, e seus filmes tem admiradores e detratores quase em igual número. Vê-los sair desse lugar onde estavam construindo uma marca para encampar uma superprodução da Paris Filmes, produzida por Mariza Leão (das franquias ‘De Pernas pro Ar’ e ‘Meu Passado me Condena’), é como assistir o Brady Corbet (de ‘Vox Lux’) dirigir a biografia de Donald Trump financiado pela Warner.
O segundo dado de surpresa vem da escolha de quase que estritamente se fixar na vida empresarial do personagem título, excluindo quase por completo sua vida privada. Isso seria muito natural, caso Eike não tivesse sido casado por muitos anos com a musa Luma de Oliveira, e seu casamento e posterior separação terem sido cercado de manchetes de revistas e jornais. Esse momento ocupa um brevíssimo período do filme, basicamente uma sequência de sonho/delírio, que rasga a narrativa e parece com algo que os diretores fariam. É um momento de epifania do protagonista, que vê a vida amorosa passar como uma flecha pelos seus olhos graças a um “aparelho revolucionário” apresentado por um charlatão.
Eu diria mais, há coragem de bloquear tais passagens do longa, tendo em vista que além de tornar seu protagonista popular, isso traria dados melodramáticos à produção, atingindo um público mais amplo. Ao invés disso, ‘Eike – Tudo ou Nada’ é um título que fala quase exclusivamente do mundo corporativo que o personagem viveu durante a maior parte de sua vida. São cenas de discussão político-econômica, falando um ‘economiquês’ facilmente traduzido para o público, que não se perde na tradução. Mas não pode deixar de se ressaltar essa ousadia de tratar Eike Batista como um homem exclusivamente de negócios, quando sua vida privada vazou com facilidade e ele mesmo tem o ego inflado o suficiente para ter vendido essa imagem de galã.
Dito isso, temos um drama que consegue transmitir alguma excitação em sua duração, mas que ao longo do tempo, se revela muito fechado em sua própria atmosfera. Não há respiro para os personagens ou para o espectador, que lida com o maravilhoso mundo da especulação como quem tratasse do assunto diariamente. Sabemos que não é verdade e a maior parte do público conhece o “Eike da Luma”, por isso o aplauso pela ambição de tratá-la como uma aparição, e de investir todos os seus esforços em tentar fazer com que suas atividades tenham algum fundo de interesse no público. Para isso, a montagem de Maria Rezende (de ‘Ponte Aérea’) é essencial para conseguir dinamizar ao máximo o que é visto, e tirar do filme o que poderia ser um ar de superioridade.
No centro de tudo, a grande chance dramática da carreira de Nelson Freitas. Não que o ator notabilizado pela comédia não fosse devidamente bom e reconhecido como tal. Mas sabemos que, por melhor que seja o comediante, há um momento em que a necessidade de produzir material sério bate, como a cobrar uma posição. E Freitas entrega tudo, na verdade ele é o grande motivo para assistir ao filme; sua atuação é destemida e passeia por uma linha da histeria do qual ele nunca se aproveita. Eike Batista é um homem de muita evidência, se apossar dessa persona sem julgá-lo, sem condená-lo e ainda torná-lo humano foi uma tarefa que o ator cumpriu em cima do risco. Ele tem consciência do lugar onde estava e executa o que é pedido, um farsa moderna em tom de alucinação, com algum brilhantismo.
Esse lado farsesco é comprado pelo filme, que parece armar um picadeiro para os artistas circenses serem gradativamente transformados em palhaços pelo dono do circo. Um elenco que valoriza as presenças de Thelmo Fernandes (de ‘A Divisão’) e Xando Graça (de ‘Barba, Cabelo & Bigode’), que permite a seus atores usufruírem de espaço cênico para ampliar sua corporalidade, é um dos trunfos desse filme que não consegue transformar suas virtudes em algo concreto. Sempre evapora pelas mãos o que o filme tem de imaginativo, para se agarrar exclusivamente ao que é de essência burocrática. O resto fica a cargo do que é comum em biografias: reter informações para que o passar dos anos e décadas esteja exposto de maneira mais clara e menos naturalista.
Aqui em tese deveria caber, sendo que o filme se vende mais como uma alegoria do que como uma biografia. Mas dentro desse certame, também ‘Eike – Tudo ou Nada’ segue problemático, porque o filme não consegue tomar um partido entre a fantasia e a realidade, em cena. Se abraçasse ainda mais sua persona bizarra que está prestes a saltar da tela a todo momento, o filme ganharia ainda mais pontos por permitir essa entrada ao surreal. Do jeito que ficou, parece que Eike Batista ganhou um trabalho biográfico com rédeas curtas e puxadas, quando o tempo todo o filme quer claramente ganhar asas.