"Iluminadas" (2022), de Lauren Beukes
8.5Pontuação geral
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9.1

Onde: AppleTV

 

O romance de Lauren Beukes ganha uma ótima adaptação para a televisão pelas mãos da realizadora e roteirista Silka Luisa. Uma obra de investigação densa, cheia de camadas, original de fato e que toca em temas delicados como a importância intrínseca do bom trabalho jornalístico, além de uma profunda reflexão sobre a violência contra a mulher. A pegada misteriosa se torna mais sombria por conta do ar scifi que cobre a produção. A estrela do show é Elisabeth Moss. E ela também consegue dirigir muito bem 2 episódios.

Na série, seguimos a personagem de Elizabeth Moss, a enigmática Kirby, uma arquivista de um grande jornal de Chicago tentando tocar sua vida de maneira bem discreta. Kirby é sobrevivente de um abuso sexual brutal que sofreu há 6 anos e, por isso, ela suporta alguns distúrbios psicológicos traumáticos. Sendo assim, ela é tímida e atua com bastante discrição na sociedade. No jornal em que ela trabalha, o repórter Dan Velazquez (fantástica interpretação de Wagner Moura) cobre estreitamente o caso de uma mulher assassinada que teve o corpo largado nos túneis do metrô da cidade.

Kirby, mesmo com suas diversas confusões mentais, é observadora e logo tem a certeza de que o caso do jornalista Dan não é algo isolado. Porém maior. Ela tenta se aproximar de Dan para cravar que se trata de um serial killer, pois há fortíssimas semelhanças entre o ataque que ela sofreu e a morta investigada pelo personagem de Moura. Os cortes e as circunstâncias apresentadas pelo relatório da polícia são idênticos às marcas dela.

A roteirista Silka Luisa faz questão de nos prender ao trabalho essencial que o jornalismo presta à sociedade. Graças a uma apuração “raiz”, com fotos espalhadas e reproduzidas, telefonemas diversos e pesquisas intermináveis, pôde-se ter a certeza de que se tratava de um serial killer. E então, descobrimos que muitas foram as assassinadas. O trabalho jornalístico segue bastante questionado no mundo bipartido de hoje, quando notícias falsas voam e, desta forma, o árduo, correto e recompensador trabalho de apuração campal da notícia não é valorizado.

A série então se afasta, no bom sentido, do trabalho policial. Quem chega às conclusões são os jornalistas. Eles suprem vorazmente quando não há um órgão público para defender as mulheres violadas ou mesmo quando não há o apoio incondicional da polícia. Quem pode provocar a sociedade em busca da prisão do assassino? Os jornalistas. E aqui no caso, Dan Velazquez. O que é visto em “Iluminadas” é de dar vontade de voltar às Faculdades de Comunicação. Uma carta de amor ao Jornalismo Investigativo.

 

A sutil confusão deliciosa da série 

 

A misteriosa ficção científica que segura a série pega o espectador de surpresa. Seguimos o show pela ótica de uma abalada Kirby (com suas confusões mentais), e assim chega-se à mesma situação de surpresa pela qual ela passa sempre que o cenário se altera, como algo pequeno mudando em tela. Ligeiras alterações de realidade. Destaque para a montagem da obra. Cada inserção de algo razoavelmente significativo à narrativa gera um fascínio do público junto à tentativa de buscar entendimento. Por exemplo, o cabelo de Kirby muda de cor abruptamente de um quadro para outro, ou mesmo a posição de sua mesa no trabalho. Deleite para os amantes de scifi e teorias.

Jamie Bell é Harper Curtis, o assassino da obra. Ao lado de “Billy Elliot” (2000), eis aqui seu maior papel. Ele é gelado, calculista, perfeccionista, aterrorizante e está imerso no estudo do personagem. Não é spoiler, ele é apresentado como tal no primeiro minuto de show. O interessante, fugindo de clichês do gênero, é desvendarmos como foram cometidos os crimes, como estas mulheres se conectam, e como o scifi aqui presente tem o poder de solucionar o caso. A ficção científica de “Iluminadas” consegue assertivamente emular como o abuso sexual destrói uma verdade, destrói a mente daquelas mulheres de modo irreversível.

E Wagner Moura está à vontade. Bom falar disso. Formado em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia, ele mergulha na arte de ensinar como se apura uma matéria nesta obra. Seu Dan Velazquez é sempre exausto, fisicamente esgotado, gosta de confronto intelectual. Destaque para os momentos em que ele está absurdamente alcoolizado. Uma das maiores entregas de um ator à interpretação envolvendo este vício que pude ver recentemente na televisão.

Ao final, mesmo que de maneira apressada, vale dizer que a produção guarda seus últimos 20 minutos para uma plausível explicação ficcional de tudo o que foi visto, conseguimos entender de certa forma a premissa e também a imensa importância de um objeto que aparece na série e que é finalmente controlado por Kirby. Mas a série cumpre sua proposta ao destilar classe quando dá o correto espaço para o papel social do jornalismo e quando nos norteia contra uma misoginia, que mesmo ficcional, dói no âmago.