Como é bom ver uma película do brilhante diretor argentino Juan José Campanella. O escritor e diretor do atemporal – e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro – “O segredo de seus olhos” (2009) retorna em alto estilo às telonas com um humor ácido e pontual que choca o telespectador.
Com uma câmera mais observadora – menos invasiva, à distância às vezes –, Campanella nos conta a história de um grupo um tanto diferente de quatro velhos amigos, formado por um antigo diretor de cinema, um roteirista frustrado, uma atriz aclamada da época de ouro do cinema e seu marido ator. Podemos dizer que vivem numa tensa harmonia. Todos moram juntos numa grandiosa e pomposa casa. O grupo e a casa, com tudo que acontece ali, são ameaçados pela aparição de um jovem casal que, de maneira ardil e calculista, tenta convencê los a vender a mansão. O objetivo da dupla esperta é desenvolver um projeto imobiliário próprio e lucrativo.
O grupo é guiado numa química incrível pela famosa atriz Mara Ordaz (Graciela Borges). Graciela está magnífica no papel ao compor uma mulher ácida, amarga, pouco vil e manipuladora. Ela vive apenas das glórias do passado. Seus bonachões companheiros estão excelentes também. Eles não querem a tal venda do imóvel e isso fica claro. Os três se completam brilhantemente. Os potentes atores Oscar Martinez, Luis Brandoni e Marcos Mundstock apresentam personalidade dúbia, intenções escondidas e uma frieza espetacular que causa tensão. Os quatro se atacam por toda a película.
A boa dupla ardilosa formada por Clara Lago e Nicolás Francella (muito parecido com seu pai, o ator Guillermo Francella) chega para fazer um atual e ótimo contraponto de personalidades. Com isso, a dualidade criada entre idosos bobos versus vilões jovens mal intencionados nos brinda com qualidade elevadíssima. Destaque aqui para a atriz espanhola Clara Lago que soa completamente argentina devido a seu perfeito sotaque portenho.
Campanella remonta seu já conhecido talento ao fazer sua versão do excelente “Los muchachos de antes no usaban arsénico” (José Martinez Suarez, 1976). Ele aqui melhora sua fonte de busca, vai além do que foi mostrado em 1976, com pequenas inserções pontuais na narrativa. O diretor Martínez foi ácido naquele. Já Campanella, mostra mais humor negro para este de 2019. Ele realiza uma adaptação magnífica e desfila com qualidade por diversos gêneros do cinema.
Por exemplo, podemos perceber o toque de suspense do diretor assim que os dois jovens sujeitos interessados na compra da grande casa aparecem na obra. Logo ele passeia por mistério, flerta com romance e volta à adorável comédia ácida e de humor negro na qual se institui a obra. Soberbo em vários sentidos.
Há uma clara conspiração no ar, um desequilíbrio de temperamento cômico que põe – por muitas vezes – os três homens contra a mulher. Campanella coloca seus homens funcionando sempre juntos. O passado sombrio das esposas dos personagens de Martinez e Mundstock aguça o sentido de mistério no ar. Algo de muito estranho flerta com nosso olhar mais intimista.
A trilha sonora que também é intimista, a vontade incessante do jovem casal na compra da casa e as pequenas piadas não intencionais que subvertem o gênero da comédia nos apresentam bem a problemática da obra. E nos prendem até o terceiro ato de maneira sutil.
O terceiro ato é brilhante, sufocante e bizarro. Uma claríssima homenagem do diretor argentino ao magistral drama-noir “Crepúsculo dos Deuses” (1950), do genial Billy Wilder. Existem momentos de pura metalinguagem que mesclam a dureza da realidade destes profissionais do cinema em sua velhice com os brilhos de outrora.
O desfecho um pouco entreguista – que já vinha sendo anunciado pelo filme – não diminui a obra. Engrandece evidentemente pelo talento do diretor em contar histórias. A película seguiu se o tempo todo como uma lição de atuação e de roteiro. O toque bizarro de seu fim – com uma ligeira e estranha surpresa – deixa a sensação maravilhosa de podermos presenciar o estiloso retorno de Juan José Campanella às telonas.