Quando anunciado que seria feito um filme solo sobre a origem de um dos maiores vilões das HQs da DC Comics, a ser dirigido por Todd Phillips, muitos torceram o nariz mesmo com a curiosa aparição do nome de Martin Scorsese envolvido naquele pré-projeto. Dado o produto final, “Coringa” poderia facilmente ser um filme comum de construção de um personagem com perturbações psiquiátricas, independente da inspiração de seu material-base.
Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um sujeito introvertido, com problemas financeiros e mentais, que mora com sua mãe doente e diariamente sofre com a sociedade em ebulição em sua cidade, com graves problemas econômicos e de segurança pública, até reagir abruptamente e se deixar tomar por toda a sua insanidade nesse cenário catártico em Gotham.
O roteiro escrito pelo diretor e por Scott Silver contrói muito bem o arco dramático de seu protagonista e de todo o entorno que vai engatilhando as viradas de atos muito bem distribuídas, dando fluência narrativa que é perceptível na trilha, fotografia e tom do filme.
A fotografia realça muito bem a transformação de Arthur Fleck no Coringa ao adicionar cores em meio a uma cidade cinza, num sujeito predominantemente cercado de bege e marrom, com o vermelho aos poucos assumindo sua posição de destaque, tanto pelo sangue como pela maquiagem do palhaço do crime.
A trilha sonora da islandesa Hildur Gudnadóttir (a mesma da série “Chernobyl”) usa muito bem os agudos da forma melancólica que seu triste protagonista exige, e também é mais um elemento a favor da construção daquele universo em catarse em vias de ebulição no seu terço final.
Com um elenco muito bem escalado até em seus menores papéis, Joaquin Phoenix é a alma do projeto com todo o seu talento, que não é nenhuma novidade para quem acompanha sua filmografia (com alguns ecos de papéis anteriores do ator, sem qualquer prejuízo ao trabalho aqui), mas ainda surpreende a cada filme, aqui principalmente na questão do riso acionado pela ansiedade do personagem e que vai sendo absorvido ao mesmo passo do estabelecimento pleno de sua insanidade.
Salvo raríssimos momentos em que transparece a pouca familiaridade do diretor em projetos mais densos, “Coringa” é um estudo de personagem realizado com absoluto controle e que só escorrega de fato na provável colaboração do estúdio dentro da narrativa, tentando espalhar fanservices dispensáveis ao eixo central deste intenso drama psicológico onde o material inspirador é apenas um detalhe.