For Sama (UK 2019)
De um mero e despretensioso registro visual sobre a revolução na Síria (2012) a documentário vencedor do Bafta 2020 e a um dos favoritos ao Oscar deste ano. Este é o crédito inicial do impactante, surpreendente, urgente, grandioso e íntimo documentário “For Sama” (2019). Uma câmera que – em meio ao absurdo visceral do conflito – busca sempre exibir esperança e resistência. A Cada segundo, acompanhamos o sofrimento e a luta descomunal de Waad al-Kateab e Hamza al-Khateab, além da filha deles, Sama, para quem é feita a obra.
No ano de 2012, a jornalista – também ativista – Waad al-Kateab, carrega sua câmera para as ruas da cidade síria de Aleppo a fim de registrar a revolta contra o regime do presidente sírio Bashar al- Assad, com apoio russo à época, que acontecia nos arredores da Universidade local. Ao final de 2017, quando ela termina toda a edição do seu material, Waad se tornava ali a pessoa, em todo o globo, com o maior conteúdo sobre a guerra da Síria.
Waad e o médico Hamza batalham durante toda a película por sua sobrevivência e também pela de sua filha Sama. O intuito básico – observado pela lente mais intimista que já pude observar de um confronto destes – é apenas ajudar o próximo, o povo sírio. Em meio a um arremedo de cidade, é possível constatar o casal cuidando de quintais, fazendo piadas com amigos, protegendo crianças e, o mais incrível, levantando com as próprias mãos dois hospitais temporários.
Hoje, temos o numeral de quase 500 mil mortos desde o início dos conflitos em 2011. O Channel 4 britânico – o mesmo que criou o sucesso da Netflix “Black Mirror” (2011) – logrou êxito em alcançar Waad, ainda em Aleppo, e assim manteve um laço com ela em busca das filmagens sobre o caos que existia por lá. Muitas das imagens que já devemos ter visto sobre a guerra da Síria podem ter vindo das lentes da mãe de Sama. O próprio canal preservou sua fonte em sigilo absoluto até meados de 2017.
Waad não entra no assunto político em si. Não é o escopo da produção. Sabemos apenas que ela é contra o regime de al-Assad, que sitiou o país por muito tempo. O que mais choca nesta obra é claramente o alvo do conflito. Andando pelo trabalho de Waad – e ela faz questão de exibi-lo numa ordem não cronológica – o que mais se vê são crianças sofrendo. Impossível não se envolver emocionalmente com tamanha brutalidade. Por isso asseguro (grifo meu) que o conteúdo mostrado aqui não é para qualquer público. É extremamente pesado.
Waad então se junta ao diretor britânico Edward Watts, após 2017, e assim iniciam a edição do documentário. O que é evidente aqui é o pedido deles a todo segundo da obra: parar com bombardeios a escolas e a hospitais. Em sua linda declaração à filha, no princípio da produção em meio a tiroteios, ela fala das escolhas feitas e pergunta ali à Sama: “eu fiz esse filme para ti, algum dia você vai nos perdoar?”.
Com isso, a única certeza que se tem é de que Waad fica em Aleppo – ela poderia ter fugido, pois teve a chance – apenas para relatar ao mundo de maneira gráfica as covardias feitas com civis. O compromisso dela com o documentário era este: ela escolhe ficar para salvar gente. Não era especificamente mostrar o quadro político e suas várias camadas.
Um dos momentos mais marcantes do cinema no ano de 2019 – sem spoiler – está neste documentário. Waad al-Kateab capta, não há outra palavra, um “milagre”. Um instante gigantesco. Emocionante de fato. Ápice que nos faz refletir e ter um pouco da positividade que ela ostenta em meio ao caos apresentado. Outro momento emocionante é visto quando o casal principal está dançando ao som de Julio Iglesias, como se nem guerra houvesse. Waad chegou a alertar ao Channel 4 que esconderia o material na terra, caso não sobrevivesse. Sama terá muito orgulho da heroína que vimos aqui.