Juliana (Julia Dalavia) descobre ser filha ilegítima de um coronel suicida recém-falecido. Como única herdeira, ela entra em conflito moral quanto ao aceite de tal patrimônio, fruto de violências inomináveis. O que a leva a ponderar tal aceite é sua avó, que sofre de cancêr e cujo dinheiro seria de imensurável ajuda para o custeio de seu tratamento.
Ao explorar os pertences do falecido, Juliana se depara com um livro que narra a história verídica de dois presos políticos que se conhecem na prisão. Descobre, por fim, que seu pai foi o torturador de ambos.
A trama faz um link entre três linhas temporais. Os anos de 1960, através da retratação do furor político das rebeliões estudantis; 1970, para a época da guerrilha armada, e por fim 1999, pré-virada do milênio, através de Juliana, que figura como o resultado geracional dos períodos anteriores.
Diante de nosso atual cenário sócio-político, com um ex-presidente extremamente conservador, subversor da garantia dos direitos individuais, cujo governo foi embasado no escancarado apoio à ditadura militar, o filme trabalha em uma frágil seara, procurando ampliar as variáveis acerca da percepção pública sobre este período histórico e as figuras que fizeram parte dele.
A narrativa se concentra na desmarginalização dos guerrilheiros, através da demonstração de sua humanização, como pessoas que se doaram e se sacrificaram – física e mentalmente – em prol de um país mais justo, igualitário e livre.
Sob este aspecto, contudo, a reiteração da representação naturalista dos atos de tortura, através de cenas demasiadamente dilatadas acaba por fragilizar por vezes o desenvolvimento narrativo em geral, ao adotar um tom professoral e didático.
Por outro lado, o arco narrativo acerca da Igreja e religião se destaca e sobressai, não só pela figura do ator César Mello (que é uma das grandes surpresas do filme), mas também por provocar discussões mais efetivas acerca do desenvolvimento e empoderamento da complexa figura evangélica, que se mobiliza com força faccional e atuante em questões de cunho político e social até os dias de hoje.
Em seu contexto geral, o filme cumpre seu objetivo sócio-político de relacionar e reposicionar contextualmente a ditadura à sua realidade – um período violento, sangrento, desumano e opressor, que deve ser retratado como tal, com o objetivo de evitar que novos movimentos intervencionistas se dissipem. Importante mencionar que o roteiro se inspirou em trechos do livro “Araguaia: Relato de um guerrilheiro”, de Glênio Sá e contou com a consultoria do ex-deputado José Genuíno e o ex-ministro da Cultura dos governos Lula e Dilma, Juca Ferreira.
*Filme assistido durante a 46a. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e com estreia prevista para dia 26 de janeiro de 2023.