"A MÃE" (2022), de Cristiano Burlan
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Premiado nos Festivais de Málaga, Gramado e Vitória, e escrito em parceria por Cristiano Burlan e Ana Carolina Marinho, “A Mãe” conta a história de Maria (Marcélia Cartaxo), uma mulher nordestina, que trabalha como camelô e mora com seu filho Aldo (Dustin Farias) em uma periferia da cidade de São Paulo. Após o desaparecimento dele, e acreditando que o mesmo tenha sido assassinado por Policiais Militares em uma ação na favela, Maria inicia uma luta contra a burocracia e o poder, resultantes do controle interventor do Estado e do tráfico, na pretensão de encontrar seu filho.

O filme parte do retrato real de uma época de extrema violência em São Paulo, em que a Polícia Militar foi autorizada a abordagens mais rígidas nas periferias da cidade, diante da oposição ao PCC, o que resultou na organização do que hoje é tido como “milícia” e em uma série de desaparecimentos e assassinatos de jovens periféricos, até hoje sem resolução.

O roteiro ainda surge de uma realidade íntima do diretor Cristiano Burlan, que teve o irmão violentamente assassinado pela Polícia Militar, conforme retratado por ele em seu documentário “Mataram meu irmão”, que faz parte de sua “Trilogia do luto”. Em uma extensa cinematografia (18 filmes, com mais 2 em fase de produção e pós), pautada por suas próprias experiências e vivências com o luto decorrente da violência do Estado, o diretor denuncia através das lentes de sua câmera, a deterioração social e cultural em um panorama societário desigual e inóspito.

A partir da construção dramática da narrativa, personagens, ambientação, tudo passa pelo olhar cinematográfico apurado do diretor que, através de fortes influências do neorrealismo italiano, consegue articular de maneira refinada a relação entre a forma cinematográfica e o tema em si.

Através de planos fixos, fechados e dilatados, que demarcam o percurso, existência e relação de pertencimento de Aldo ao ambiente do qual é brutalmente extraído; planos abertos que revelam a imensidade espacial que comprime e oprime as personagens ou ainda, planos fechados que acompanham o olhar da protagonista e captam seu fervor íntimo pulsante, decorrente de tal opressão – a articulação cinematográfica vívida do diretor merece destaque.

Destaque também para uma direção de arte minuciosa (que se atentou até para o costumeiro pregador utilizado para fechar o saco de sal), responsável por nossa imediata identificação afetiva com o ambiente familiar de Maria, como se tivéssemos sido convidados para um cafezinho.

Para além do conhecimento cinematográfico e habilidade técnica, por conta da pessoalidade com o material, o diretor expõe um cenário de convulsões sociais sem propor rasas soluções ou excessos melodramáticos, se mantendo fiel ao seu olhar documental, em face da árdua e violenta realidade periférica que se presentifica.

Entretanto, o diferencial de Cristiano Burlan talvez seja exatamente a empatia com a qual ele olha para a história – tanto a sua como as que conta. Empatia que se traduz através da dicotomia peculiar de um olhar que não ignora a concretude, mas consegue atravessá-la, extraindo dela poesia.

Isso reverbera inclusive na escolha de sua protagonista – a grandiosa atriz Marcélia Cartaxo (inesquecível Macabéa, em a “Hora da Estrela”, papel que lhe rendeu o Urso de Prata), que venceu pelo segundo ano consecutivo – o primeiro pelo ótimo “Pacarrete” – o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Gramado deste ano.

A atriz detém uma ampla e admirável tessitura dramática, através da qual consegue absorver e transmitir a polarização de sentimentos de sua personagem, humanizando a mesma. Maria é o misto da amabilidade, acolhimento, amor, dor, sofrimento e força, luta, resistência – necessárias para sua própria sobrevivência.

Sobrevivência sua e de muitas outras “Marias”, a exemplo de Débora Silva, fundadora do movimento “Mães de Maio”, que teve seu filho assassinado pela Polícia Militar e que relata sua história pessoal no filme, reforçando a denúncia através da ficção.

No fim, a partir da dura e real exposição acerca da opressão permanente e decorrente de um regime pautado pelas desigualdades sociais, o filme trata justamente sobre sobrevivência, não focando na morte como fim, mas como trajeto para ressignificação de nossa sobrevivência.

 

Trailer Oficial A MÃE, de Cristiano Burlan

Maria (Marcelia Cartaxo), uma mãe solo que vive na periferia de São Paulo, volta para casa à noite e não encontra seu filho adolescente Valdo (Dunstin Farias) Depois de uma busca ininterrupta pela vizinhança, ela começa a ameaçar a tranquilidade dos traficantes locais que sugerem que Valdo foi assassinado em uma ação da Polícia Militar.