“Decálogo” foi lançado na TV polonesa em 1989 e se constitui numa das obras-primas do cineasta polonês Krzysztof Kieslowski, o mesmo que nos deu a famosa Trilogia das Cores (“A Fraternidade é Vermelha”, “A Igualdade é Branca” e “A Liberdade é Azul”).
Em “Decálogo”, Kieslowski disseca os Dez Mandamentos introduzindo-os a questões contemporâneas, todas vividas por moradores de um complexo residencial em Varsóvia, como uma espécie de microcosmo da amostragem mundial sobre as questões levantadas.
Com interseções entre si, e uma figura misteriosa e emblemática que aparece em oito dos dez episódios (não apareceu em outros por questões de agenda do ator, uma pena em termos de equilíbrio da proposta de sua figura nos episódios).
Kieslowski oferece situações diversas onde a segunda chance é oferecida aos pecadores de cada episódio, sob diferentes estéticas e propostas, tornando “Decálogo” também uma amostragem fiel do que é o bom cinema contemporâneo.
- EP. 1 – “AMARÁS A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS”
O tema central aqui é sobre o confronto cientificismo x religiosidade, através de pai e tia, respectivamente, do jovem Pawel. O fio narrativo do episódio se inicia sob as dúvidas e descobrimentos do garoto em contato direto com ambos, e o roteiro destina ao último ato, próximos dos 20 minutos finais, uma crítica drástica e verdadeira aos dois extremos
O confronto ao primeiro mandamento cristão, com uma linguagem cinematográfica singular que nos coloca em contato direto com os dramas envolvidos na trama, faz do exercício da tragédia classicamente descrita no drama um elemento importante para o legado deste episódio.
Nota do episódio: 10
- EP.2 – “NÃO INVOCARÁS O SANTO NOME DE DEUS EM VÃO”
Kieslowski opta por uma abordagem mais concentrada e com profundidade dos protagonistas envolvidos, um chefe de enfermagem e a esposa de um paciente, ambos moradores do mesmo prédio.
Ambos com seus próprios vazios e angústias, principalmente a mulher que precisa optar se leva adianta ou não uma gravidez fruto de adultério, e coloca como balança a opinião profissional do médico sobre a saúde do marido: se ele sobreviver, ela aborta, se ele morrer, ela leva a gravidez adiante.
A crueza do universo deste episódio amplificam o peso dos conflitos dramáticos, e mais uma vez os 15 minutos finais são uma aula de dramaturgia de Kieslowski e seus atores, em especial o fator que se mostra a essência do episódio em confronto ao segundo mandamento.
Nota do episódio: 10
- EP.3 – “GUARDARÁ DOMINGOS E FESTAS DE GUARDA”
Uma mulher procura o ex-amante, casado e em plena comemoração de Natal com sua família, para buscar seu marido, desaparecido desde a tarde. Na busca por ele, de canto em canto na madrugada fria de Varsóvia, ambos levantam e relembram sua antiga relação e os fatos que os levaram a ficar longe um do outro.
A essência do episódio é desvendada ao passo que as características e informações sobre a protagonista vão se revelando, com fatores que vão de encontro ao terceiro mandamento cristão e compõem a crítica social de Kieslowski neste episódio.
Nota do episódio: 7,5
- EP.4 – “HONRARÁS PAI E MÃE”
Pai viúvo e filha de 20 anos vivem juntos numa relação fraterna e amorosa, até que a filha descobre um envelope entre os pertences do pai, escrito para ser aberto apenas quando este falecesse. Tomada pela curiosidade, ela abre o pacote, e descobre , através de bilhete escrito por sua falecida mãe, que seu pai na verdade não é seu pai biológico, o que surte profundas alterações em seu relacionamento.
Kieslowski maneja muito bem com as mais diversas tensões que surgem com essa revelação, tanto no texto quanto pelas imagens, onde ambos os protagonistas vão muito bem em seus papéis, apesar do desfecho destoar um pouco do tom do restante do episódio.
Nota do episódio: 9,5
- EP. 5 – “NÃO MATARÁS”
Um desocupado transgressor, um motorista de táxi preconceituoso e um defensor público idealista se vêem conectados por um brutal assassinato, punido com a pena de morte pela justiça.
Kieslowski realiza aqui uma verdadeira obra-prima colocando o punitivismo do Estado em confronto direto com o quinto mandamento bíblico, numa leitura profunda e fantástica da questão da pena de morte na sociedade moderna mostrando os pontos de vista possíveis neste contexto.
Nota do episódio: 10
- EP. 6 – “NÃO COMETERÁS ADULTÉRIO”
Um jovem tímido e inocente, fascinado por uma vizinha de frente mais experiente, espia-a constantemente com sua luneta pela janela, e acaba se apaixonando por ela. Tomado pela sua fixação, toma iniciativas indiretas para ter contato com ela, até que chama sua atenção.
Aqui Kieslowski se referencia bastante na linguagem hitchcockiana do voyeur nas cenas em que o jovem espia sua amada, e nos oferece uma virada que coloca o significado deste sexto mandamento em outro plano mais complexo e subjetivo.
Nota do episódio: 9,5
- EP. 7 – “NÃO ROUBARÁS”
A jovem Majka deu à luz com 16 anos, e para evitar escândalo na sua universidade na época, define que a mãe assuma seu filho como dela. Seis anos depois, o arrependimento e a opressão do sentimento materno faz Majka raptar a própria filha de sua mãe, a fim de iniciar nova vida como sua mãe de fato.
Kieslowski aqui entrega o episódio mais fraco deste “Decálogo”, onde não se apresenta muito bem o conflito associado ao mandamento, e a ironia sobre a autoria da posse nessa disputa faz o enredo ser confuso neste episódio.
Nota do episódio: 7,0
- EP. 8 – “NÃO LEVANTARÁS FALSOS TESTEMUNHOS”
Uma professora cristã de ética é confrontada 45 anos depois por uma mulher judia, que quando criança não foi aceita pela professora e seu marido sob pretexto de exercício de falso testemunho caso a batizassem e a assumissem para protegê-la do regime nazista na 2ª Guerra Mundial.
Talvez o episódio mais intenso de debate sobre questões religiosas, constituído basicamente de diálogos entre a experiente cristã com seu maior pecado (definido na frase dela em aula sobre o valor do nascimento de uma criança no mundo) travestido de fidelidade católica. Uma aula de ética sob diversos contexto de Kieslowski.
Nota do episódio: 9,0
- EP. 9 – “NÃO DESEJARÁS A MULHER DO PRÓXIMO”
Um homem que se tornou impotente decide se separar da mulher, mas esta o convence a seguirem casados, se adaptando às inconveniências sexuais provocadas pelo problema dele. Porém, ele descobre que a esposa tem um amante, e se torna obcecado pela vida extra-conjugal da esposa.
Mais uma vez Kieslowski referencia um episódio ao universo de Hitchcock, agregando a montagem no aspecto da ansiedade do protagonista sobre a infidelidade da mulher, criando a curiosa situação do marido impotente que deseja a própria esposa, e se torna um voyeur da implementação de seus desejos através de um terceiro, levando isso aos limites extremos. Um episódio de drama psicológico intenso e muito bem conduzido.
Nota do episódio: 10
- EP. 10 – “NÃO COBIÇARÁS COISAS ALHEIAS”
O pai de dois irmãos, um roqueiro e um pai de família, falece e deixa uma vasta coleção de selos, valiosíssima e cultuada no meio dos colecionadores. Tomados pela ganância do valor financeiro do legado do seu pai, eles tomam medidas extremas para tentar garantir um último selo austríaco buscado pelo pai na vida, toda, segundo o seu diário. Talvez o episódio mais leve da série com aspectos clássicos de humor negro, a jornada dos irmãos em proteção do patrimônio valioso herdado dialoga com diversos episódios da série, e fecha com chave de ouro o conceito do “Decálogo”.
Nota do epísódio: 10