Pedro Almodóvar, que saudades! Muito bom sair leve do cinema após a obra mais sensível e honesta deste gigante diretor espanhol. É dolorosa também, talvez não tanto como vimos em seu “A pele que habito”, de 2011. O espanhol realiza aqui um ensaio sobre saudade, dores e inspiração. Uma homenagem trivial sobre a vida. Apesar de ele ter afirmado em Cannes – neste ano – que não seria uma obra autobiográfica, ele acabou revelando à imprensa que alguns eventos de sua vida o inspiraram para a construção deste filme. Muito por parte disso, o trabalho é realmente intimista.
Almodóvar concorreu à Palma de Ouro em Cannes, e foi a sexta vez, mas não levou. No entanto, devido à entrega impecável de um dolorido e esgotado em tela – Antonio Banderas – a película sai premiada do festival com o título de melhor ator. Banderas tem sua melhor performance no cinema certamente, senão muito perto disso. O carinho de Banderas com o roteiro é percebido o tempo inteiro. Pelos olhos tenros do ator espanhol observamos Almodóvar discorrer bem sobre aquilo que ama e nos encanta. Foram toques cômicos, sexualidade aflorada, descobertas precoces, saudades, reflexões, e um tanto de dor também. Ele usa de maneira magistral a metalinguagem ao fazer uma homenagem ao cinema. O diretor insere o personagem de Banderas – com suas dores – para homenagear o processo glorioso da criação.
Com os cabelos brancos e espetados – praticamente como o próprio Almodóvar – poderíamos comparar, Antonio Banderas dá vida ao diretor de cinema Salvador Mallo. Num início de filme um pouco arrastado, porém muito bem concatenado, vemos Mallo sofrendo para criar e lutando contra diversos problemas de saúde. As expressões sofridas estampadas na face Banderas nos fazem sentir a dor que ele experimenta. O ator espanhol está espetacular. Ele também apresenta depressão e uma queda em relação ao controle de seus desejos. Com insuportáveis dores físicas e com a carreira completamente estagnada, Salvador Mallo parte para reflexões sobre sua vida profissional e sobre as relações com sua falecida mãe.
O que acendeu em Salvador Mallo tais reflexões sobre a vida foi o fato de que um de seus trabalhos antigos recebeu uma bela repaginada no cenário espanhol em uma cinemateca de Madri. Mallo não se dava bem com o ator daquele trabalho à época: Alberto Crespo (um ótimo Asier Etxeandia). Nesta reestruturação de sua obra, a relação com Alberto retorna de um modo formidável. Muitas histórias de sua vida são revisitadas aqui intensamente por Mallo. Até heroína – pelas mãos de Alberto – o diretor Salvador Mallo experimenta a fim de fugir de suas dores. São camadas diversas apresentadas por Antonio Banderas que traduzem conflitos e paixões variadas ao longo da vida de Mallo.
Nos flashbacks conhecemos as inesquecíveis versões de Jacinta Mallo – mãe de Salvador. Quando jovem, Jacinta é uma Penélope Cruz protetora, enérgica e forte. Quando perto de falecer, Julieta Serrano dá voz a uma mulher ainda mais rancorosa e que não aceita seu filho e todas as intimidades dele. Pedro Almodóvar aborda como poucos os temas femininos e o autorreconhecimento. É encantador poder identificar isso mais uma vez na narrativa de Almodóvar. Temas difíceis trabalhados da maneira mais simplista possível pelo cineasta. E, caso observássemos do ponto de vista autobiográfico (que Almodóvar insiste em dizer que não é assim), teríamos certamente uma aula sobre como se falar do cinema fazendo uso do próprio cinema. Uma palestra sobre metalinguagem.
As explosões de cores primárias, sempre presente nas obras do diretor espanhol, obviamente estão por aqui também. Elas são bastante significativas com Almodóvar. Primeiramente contrastam com o sofrimento do personagem principal. Depois – durante seu processo de solidão, resiliência e dor – fazem Salvador Mallo renovar seu corpo e sua mente.
Confesso que me senti renovado vendo esta película. Uma sensação boa, como disse lá no alto: carregado de suaves emoções. Almodóvar volta à sua grande forma. Retoma um auge parecido com o que já vimos em obras como “Tudo sobre minha mãe” e “Fale com ela”. Singelo ele foi ao estabelecer um paralelo com o processo de criação: o caminho ao sucesso é doloroso por inúmeras vezes.