DISPONÍVEL NA AMAZON PARAMOUNT
Ao contrário de um dos casais mais populares da série, minha relação com Shitt’s Creek não foi amor à primeira vista. Movido pelas sugestões constantes de um amigo e o número arrebatador de Emmys que o seriado recebeu, dei uma chance, mas o roteiro parecia forçado demais e o elenco apresentava afetações em excesso.
Com o passar do tempo, porém, a familiaridade com os personagens e o enredo escrito por Daniel Levy, que também protagoniza a série no papel de David, suavizaram o incômodo, que se transformou em amor e as seis temporadas foram devoradas em maratonas diárias e terminando no auge de sua popularidade.
Schitt’s Creek conta a história da família Rose, bilionários de Nova York donos de um império de videolocadoras que leva um golpe do contador e perde absolutamente todos os seus pertences – a exceção é uma cidade do interior no meio do nada que o patriarca John comprou de brincadeira para presentear seu filho David. Assim, os dois, ao lado da matriarca Moira (uma atriz falida cujo maior papel foi em uma novela cafona americana) e da filha mimada Alexis, são obrigados a se mudar para um hotel de beira de estrada caindo aos pedaços. Para completar a humilhação, David e Alexis precisam dividir o quarto – com uma porta que dá acesso interno ao quarto dos pais.
Ao contrário da maioria dos sitcoms, onde os personagens vão se tornando caricaturas de si mesmos à medida em que o sucesso aumenta, Schitt’s Creek mostra um arco dramático invejável em seus quatro protagonistas e também em alguns dos melhores personagens coadjuvantes – como Stevie, a recepcionista do hotel que se torna a melhor amiga de David. Os personagens principais são extremamente excêntricos mas os habitantes da pequena cidade dificilmente se impressionam com suas loucuras, escapando assim do lugar-comum de fazer piada com “caipiras” ou interioranos.
O desenvolvimento de cada um é acompanhado no desenvolver das histórias em episódios que trazem histórias fechadas em paralelo ao arco principal da família. O texto é brilhante ao retratar o amadurecimento de cada um, despindo os preconceitos e abraçando uma vida nova e inevitável ao serem recebidos de braços abertos por aquelas pessoas simples que vivem em uma realidade completamente diferente do que a família Rose estava acostumada.
Não há encheção de linguiça nem piadas preguiçosas – Alexis é estonteante mas seu corpo ou beleza não viram isca machista. A linguagem corporal e expressões criadas pela atriz novata são primorosas. Moira Rose rouba as cenas em uma interpretação primorosa da excelente Catherine O’Hara (muito conhecida por interpretar a mãe de Kevin no filme ‘Esqueceram de Mim’), com perucas e figurinos absurdos que contam uma história por si só, e um sotaque inventado absolutamente hilariante. Johnny, o pai, diverte com expressões faciais e erros quase infantis (bem parecido com seu personagem mais conhecido do público, o pai de Jim na franquia ‘American Pie’). E David passa de personagem irritante e rabujento a alguém mimado mas maduro, em uma das melhores evoluções em seis anos de programa.
O criador Daniel Levy já deu diversas declarações sobre como quis criar uma história feliz em um mundo idealizado – de fato, não há violência ou homofobia em Schitt’s Creek mas o programa nunca tenta se passar por realista, o que funciona muito bem a seu favor. É um escapismo perfeito em tempos tão difíceis, suavizando a quarentena no universo leve e quase absurdo sem dramas desnecessários para segurar a audiência.
Schitt’s Creek está longe de ser perfeita – a falta de representatividade, por examplo, é uma de suas grandes falhas. Apesar de contar uma história de aceitação com a sexualidade de David, não há personagens latinos ou negros – com exceção da secundária Ronie, o que é quase imperdoável em uma história contemporânea. É até irônico, de forma triste, que tenha vencido tantos prêmios ao disputar com a maravilhosa série ‘Insecure’, produzida pela atriz Issa Rae e que conta a história de um grupo de jovens amigas em Los Angeles com um elenco majoritariamente negro.
Ainda assim, Schitt’s Creek traz um merecido refresco em meio à onda de remakes, reboots e série derivadas de outras histórias que apostam na zona de conforto ao invés da criatividade. E vai além: é uma série com alma, que acalma os nervos e nos transporta para aquela felicidade instantânea e temporária, com uma última temporada emocionante e satisfatória como poucas conseguem ser.