“I May Destroy You”,
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9.3

Michaela, a senhora é destruidora mesmo, hein!

Piadas do título a parte, “I May Destroy You” (“Eu talvez te destrua”, em tradução livre) é parada obrigatória para os fãs da ficção que provoca e incomoda enquanto desenvolve o nosso senso crítico e entretém a cada segundo – de “Little Fires Everywhere” a “The Handmaid’s Tale” (com direito ao final da série inspirado por um conto escrito por Margaret Artwood, autora do livro que inspirou a série homônima).

Quatro anos após seu primeiro sucesso na TV, “Chewing Gum” (produzida pelo Canal 4 inglês e recentemente comprada pela Netflix), a inglesa Michael Coel não deixou nem rastro da comédia escrita e protagonizada por ela sobre uma adolescente obcecada por perder a virgindade. Em “I May Destroy You”, a atriz e escritora nascida em Londres pega o espectador e o joga em uma montanha-russa de sentimentos, pensamentos e emoções, de socos no estômago a momentos inesperados de descontração.

A série de 12 episódios, produzida pela BBC em parceria com a HBO, fez barulho na indústria antes mesmo de ser escrita – a Netflix ofereceu um milhão de dólares para produzir o seriado mas levou um “Não” de Michaela quando o serviço de streaming exigiu 100% dos direitos sobre o programa. Sorte do canal público inglês e da produtora norte-americana pertencente à WarnerMedia, que deram total controle para que a autora ficasse livre e contasse exatamente a história que queria.

Passada em Londres e baseada em uma trágica história real vivida pela própria Michaela, “I May Destroy You” mostra os acontecimentos posteriores a uma noite intensa onde Arabella, a protagonista, recebe uma bebida adulterada e é estuprada. Os episódios misturam flashbacks que ajudam a explicar quem é a personagem principal com o desenvolvimento da situação traumática enquanto ela tenta retomar a vida normal com a ajuda de sua melhor amiga Terry.

O enredo explora amplamente algumas das questões mais debatidas atualmente – consentimento, abuso sexual, racismo, empoderamento feminino, machismo e redes sociais. Em um determinado momento, Arabella – que também é escritora – se transforma em uma versão descontrolada de si mesmo, perdida no ambiente tóxico dos comentários de internet que a exaltam e a colocam para baixo na mesma proporção.

Quase em paralelo, a série também conta a história de Kwame, amigo gay de Arabella que também passa por violência sexual e conflitos reais muito comuns mas pouco contados. Ele traz um peso ainda maior a uma história já difícil de ser assistida e digerida mas extremamente necessária de ser contada.

Raro na televisão, o abandono da dicotomia é uma das coisas que mais chamam a atenção nos roteiros brilhantes dos 12 episódios – absolutamente nenhum dos personagens é retratado como mocinho ou vilão, o que o aproxima ainda mais da realidade. Todas as qualidade e defeitos do ser humano são levados ao extremo e por isso a comparação com a montanha-russa: em meia-hora, sentimos vontade de abraçar e socar o mesmo personagem.

Tanto Michaela quanto Arabella carregam em si uma força suprema capaz de arrancar o conforto de quem está assistindo e nos fazer mergulhar em uma auto-análise das próprias atitudes e decisões. As cenas trazem à tona a culpa de sentir pena ou ódio de determinadas pessoas, e colocam tudo em perspectiva. E é nos momentos de silêncio que compartilhamos a angústia daqueles personagens, de uma maneira que só os escritores mais geniais conseguem fazer.

Apesar da seriedade e dos temas indigestos, “I May Destroy You” ainda consegue fazer rir, às vezes no estilo “estou rindo mas é de nervoso”, mas ainda assim apresentando um espelho de uma realidade que também não é binária e apresenta tantas nuances a cada momento quanto um capítulo de um dos melhores programas dos últimos tempos. Vinda de uma mulher negra, criada na classe trabalhadora da capital inglesa, que quebrou tabus e paradigmas até chegar aqui, a história se torna ainda mais arrebatadora. Ou simplesmente destruidora.