“The Batman” (2022), Matt Reeves
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8.1

Onde: Cinemas

Como recomeçar a contar a história de um personagem depois de tantas vezes? Como transportar o espectador para um ambiente onde ele já conhece os perigos, as mazelas e seus principais agentes? O trabalho do diretor Matt Reeves nunca foi fácil. A sombra do legado do Batman nos cinemas é gigante.

A imagem do herói foi reinventada por Tim Burton em 1989. Os filmes do diretor de “Edward, Mão de Tesoura” ditaram o que seria do Cavaleiro das Trevas tanto nos quadrinhos, como na animação de sucesso da década seguinte. A imagem sombria da Gotham de Burton permanece até hoje no imaginário popular e nem a cidade Gótica-Neon-Luz Negra de Joel Schumacher conseguiu apagar. Em 2005, Christopher Nolan começou a criação do seu Batman realista, sério, sem maneirismos de histórias em quadrinhos. Um sucesso absoluto e que é tido como a melhor encarnação do personagem nas telas grandes.

Após o fim da trilogia de Nolan, ainda surgiu o Batman de Zack Snyder, um amargurado herói que tentava sobreviver entre as destruições de deuses e alienígenas. Praticamente com o herói fora do seu habitat natural, Snyder ainda construiu a caverna, carro, avião, apresentou um novo Alfred… O Bat-Affleck ainda foi parar de bucha no insustentável Esquadrão Suicida, com a quase indefensável encarnação de Jared Leto para Coringa. O vilão ainda ganhou um filme solo, encarnado dessa vez por Joaquin Phoenix, em uma Gotham baseada diretamente na Nova Iorque de Taxi Driver. Phoenix ainda levou o Oscar pelo filme.

E agora? Pra onde Matt Reeves iria correr? 

Simplesmente O Batman

Reeves já reinventou uma franquia há poucos anos. Foi com o sucesso de público e crítica dos seus dois Planeta dos Macacos que o diretor carimbou o bilhete para o mundo de Bruce Wayne e Gotham. A escalação dele é, sem sombra de dúvidas, um dos muitos acertos de The Batman.

Com tempo para escrever e produzir o filme, mais de cinco anos desde que foi anunciado como diretor da produção, Reeves escolheu uma estratégia inteligente: bebeu de diversas fontes, dos quadrinhos e dos filmes anteriores, para criar a sua própria visão do herói.

Das páginas das HQs, fica clara a inspiração em O Longo Dia das Bruxas e Batman: Ano Um. Dos cinemas, cria uma Gotham que é uma amálgama entre o esquisito-gótico de Burton e a realista de Nolan. Junta-se a isso, uma ideia de filme que combina mais com o Coringa, de Todd Phillips, as referências aos anos 70 da Nova Hollywood e, por que não, as histórias de serial killer de David Fincher, Seven e Zodíaco, e Jonathan Demme, com O Silêncio dos Inocentes.


A verdade é que mesmo baseado em tanta referência, Matt Reeves cria algo único, algo que até hoje os filmes do Homem Morcego nunca tinham realmente feito: um filme sobre o Batman.

É impressionante o tempo que Robert Pattinson passa em tela com a roupa do herói. O Batman em si está presente na maior parte do tempo e logo de cara, o próprio herói já nos apresenta ao novo ambiente em que estamos. Com a leitura do seu diário da noite de Halloween, Bruce Wayne nos mostra o que o símbolo do herói se tornou em pouco tempo: um aviso para aqueles que pretendem fazer algo de ruim. Um aviso de que é das sombras que pode surgir o que eles mais temem. E é dela, da escuridão que temos o primeiro vislumbre do Cavaleiro das Trevas. Não de Bruce Wayne, não da origem dele ou das pérolas de Martha Wayne, mas sim do Batman. Da violenta vingança encapuzada de Gotham.

Matt Reeves ainda quebra a expectativa pela história de origem, colocando logo nos primeiros minutos uma família rica e um assassinato. Uma imagem que já vimos dezenas de vezes, mas que aqui apresenta o Charada, um serial killer com seus jogos e mensagens de adivinhações, no melhor estilo Zodíaco.

Se Reeves é um dos maiores acertos de The Batman, o elenco do filme tem grande parte no sucesso desse novo capítulo. Robert Pattinson já havia mostrado ser um bom Bruce Wayne no Cosmópolis, de David Cronenberg. Em Bom Comportamento, dos Irmãos Safdie, e em O Farol, de Robert Eggers, ele provou que poderia trazer peso dramático e psicótico para o Batman. A escolha é perfeita e o ator segura as quase três horas de filme com muita força. Juntam-se a ele os quase sempre presentes James Gordon, de Jeffrey Wright, e a Selina Kyle, de Zoe Kravitz.

Se a dinâmica entre o morcego e a Mulher-Gato já era esperada e funciona muito bem, é na trama de investigação de Batman e Gordon que o filme tem uma de suas maiores surpresas. A química entre os dois é impressionante e funciona em todos os momentos. O mesmo pode ser dito da relação de Bruce com o Alfred, de Andy Serkis.

Dentro de Gotham City


Do lado da banda podre de Gotham, Paul Dano, assim como Pattinson, já tinha as credenciais perfeitas para encarar o psicopata Charada. Seja em Os Suspeitos, de Denis Villeneuve, ou como o incrível Eli Sunday, de Sangue Negro, era fácil esperar um grande vilão do ator. Entretanto, quem rouba a cena são os mafiosos Oswald Cobblepot, o Pinguim, na incrível maquiagem feita sobre Colin Farrell e no fantástico Carmine Falcone de John Turturro.

Farrell trabalha na canastrice. Seria impossível fazer um Pinguim, como Batman pede, em um universo realista. Matt Reeves passa longe do literal feito por Tim Burton, mas acrescenta elementos nas cicatrizes, nos dentes e no andar de Cobblepot que identificam diretamente o personagem clássico. Já o Falcone de John Turturro, é um deleite para os amantes de histórias de máfia, seja no jeito de falar, de se portar e até de sorrir. Além disso, a forma como o personagem é filmado, parece tirada diretamente das páginas de um quadrinho: com o rosto esguio, as sombras nas rugas e os óculos escuros sempre tapando os olhos.

The Batman não tem medo de ser um filme baseado em HQ quando é preciso. Da forma como Selina Kyle anda, luta e se movimenta, os cenários da mansão Wayne, o covil de Carmine Falcone, o esconderijo do Charada e até as falas curtas e pontuais dos policiais coadjuvantes. A estética dos quadrinhos não é uma vergonha para Matt Reeves, como parecia ser para Nolan. Ela é um elemento que dá vida e, assim como os filmes de Tim Burton, nos situam em uma Gotham imaginária, uma cidade dentro daquela realidade, daquele mundo. Não uma Nova Iorque ou Chicago da vida.

A trilha sonora de Michael Giacchino traz um dos melhores temas já feitos para o personagem. Na verdade, ele cria dois temas que se entrelaçam em um só ao longo do filme. O principal, o mesmo que está em todos os trailers, é um sinal da ameaça, da vingança, do aviso de perigo que o Cavaleiro das Trevas causa aos “vilões”. Já a outra parte é melancólica como a trajetória de Bruce, um milionário sozinho dentro de sua mansão mausoléu e de seus pensamentos traumáticos.

Giacchino ainda insere com maestria a clássica “Ave Maria” no tema do Charada. A canção, que ressoa em vários momentos da trilha, é vista quase sempre como uma oração, mas, na obra de Schubert, é parte de uma peça que fala de abandono, a crueldade dos homens e até vingança. Nada mais perfeito para um produto da truculência social de Gotham City.

The Batman é uma tempestade perfeita. Um filme com identidade, com a marca do seu autor. É mais uma prova de que o cinema está dentro do gênero dos super-heróis. Como tantos outros grandes filmes fora desse rótulo, The Batman tem grandes atuações, bom roteiro, uma trilha sonora marcante, uma fotografia bem pensada e principalmente, um ar de coisa nova.

Um questionamento que escapa das quatro linhas da tela. Um debate sobre sociedade, política, e o papel de cada um de nós no meio que vivemos. Um questionamento ao personagem, seja aquele com a fantasia ou ao mais comum no mundo real: o que veste as abotoaduras da família Wayne.


The Batman é a prova de que O Batman está pronto e deve se reinventar.