Poucas vezes teremos contato com a combinação de elementos impregnada em ‘O Telefone Preto’, impressionante estreia cinematográfica que consegue colocar algumas novas camadas qualitativas na carreira de Scott Derrickson. Co-existem, a um só tempo, a inocência do fim da infância e o princípio da adolescência, a melancolia de conscientizar a solidão pela primeira vez, o horror absoluto que nem sempre é um elemento extraterrestre a nós, os laços fraternos mostrados como inquebrantáveis, a delicadeza de descobrir uma confluência de dons com quem se ama. É isso tudo e tão mais que corremos o risco de deixar escorrer pelos dedos alguns dados superlativos da produção.
Independente da qualidade apresentada até aqui, Derrickson consegue elevar a barra de expectativa para sua próxima empreitada. Títulos como ‘O Exorcismo de Emily Rose’ e ‘A Entidade’ já tinham marcado seu lugar em uma cotação elevada, mas a matemática alcançada aqui não apresenta apenas uma continuidade de seu talento. A fina costura delineada aqui para destrinchar cada um dos tópicos acima, dar unidade a tudo e congraçar ainda os elementos externos ao que já era apresentado na ordem do ordinário, é carpintaria das mais delicadas vistas recentemente. Porque são elementos até afins, que conversam com bastante liberdade, mas espanta a forma como cada um dos seus entrechos é tratado com muita propriedade, e sem perder de vista a unidade do que é visto.
Para além das construções muito pertinentes de cada um dos personagens que está em cena, de maneira mínima ou máxima, o que funciona de maneira espantosa é a maneira como suas conexões são estabelecidas com requinte. A principal delas, a relação entre os irmãos Finney e Gwen, nunca deixa de encantar, não apenas pela vivacidade extraída dali, mas principalmente pela qualidade com que cada elemento está e compõe esse dueto. Não é simples como destacar os óbvios talentos dos pequenos Mason Thames e Madeleine McGraw, mas como foi encontrado nesses jovens a matéria-prima exata do que entendemos como química. Sua conexão é nítida, na primeira cena juntos o laço que os une, principalmente psicologicamente falando, já está posto à mesa, e acreditamos em cada lance obtido nessa interação.
Isso deixa claro que Derrickson está interessado em algumas dinâmicas enquanto realizador, nunca se prendendo à qualquer alcunha de nicho. Sua competência em dirigir um grupo tão grande de crianças, e de criar uma linha de comunicação (ahá!) entre elas, colocando mais do que carisma em cena, mas talento genuíno, não é para qualquer um poder se gabar. Além do trato com essa ala mais complexa, a infanto-juvenil, em cena, o diretor ainda eleva o que já sabíamos a respeito de Jeremy Davies e Ethan Hawke. O primeiro, sub-aproveitado desde sempre, mostra uma presença descomunal há mais de duas décadas (já impressionava em ‘O Resgate do Soldado Ryan’), aqui não ganha um papel, mas um presente, que ele devora incansavelmente, entregando um dos personagens mais difíceis de defender desse ano – isso tudo exalando uma humanidade desconcertante.
O segundo é um capítulo à parte, pois é fruto de um entendimento tão profundo quanto coletivo. Porque trata-se de uma interpretação descomunal, mas também de uma criação onde muitos elementos precisam ser colocados em perspectiva. Tem méritos Joe Hill, o autor do conto original que desencadeou o filme, o roteirista e parceiro do diretor C. Robert McGill, e os donos diretos de The Grabber, Derrickson e Hawke. Saímos de ‘O Telefone Preto’ com muitas ordens de choque a cruzar a retina, mas a iconografia do terror agradece à essa criação, uma figura tão grotesca e abominável, mas ao mesmo tempo repleta de nuances e possibilidades, que realmente não seria apenas uma produção a dar conta desse recheio. Em resumo, foi produzida uma figura que não estranhamos caso ingresse à zona da eternidade do cinema.
Muitos questionam o excesso de lacunas que o filme deixa correr ao redor de The Grabber, mas particularmente não creio que isso represente desleixo ou ausência de propósito. O personagem é propositadamente lacunar, sua origem não é esclarecida, apesar de termos um adendo familiar a ele em cena (essa sim, a ponta desnecessária da produção, mas que não provoca grandes distúrbios no todo), mas enxergo nessa falta de detalhamento caráter positivo. Esse ar desconhecido sobre o personagem é excitante e perturbador ao mesmo tempo, pois nunca temos ao nosso alcance uma possibilidade de retrocessão daquela parte – bom, não há dado empático a um psicopata, não é? Mas The Grabber ainda extrapola essa denominação, porque na sua conta ainda entrariam outros elementos de profunda perversão humana, e que são servidos para nós com parcimônia, embora os mais sagazes possam alcançar com certa rapidez tais possibilidades.
Além das inegáveis contribuições narrativas, ‘O Telefone Preto’ não esconde o que nem sei se denomina como evolução, da parte de Derrickson. Por assim dizer, o cineasta já tinha alcançado uma segura reputação enquanto contador de histórias, mas seu lugar como artesão, esse sim, se delineia de maneira diferente a partir daqui. Há uma preocupação com a imagem, com a textura dela, que ainda não tinha se mostrado tão evidente, no qual a fotografia de Brett Jutkiewicz (‘Casamento Sangrento’), que alude seus planos em determinadas passagens a um material conseguido através de super 8, se compromete em refrigerar a filmografia. Com a escolha de uma luz soturna, que realça o clima deprimente generalizado, o filme salienta os enquadramentos inteligentes escolhidos pelo talento de seu autor, que sempre reforça o caráter da obra.
A trilha de Mark Korven (de ‘A Bruxa’) é um complemento ideal a uma obra que busca o tempo todo filmar a solidão, e os desdobramentos que levam o horror extraordinário até alcançar o horror cotidiano, criando uma linha que une esses dois mundos. A interconexão da melancolia que a violência doméstica promove com uma violência ainda mais apavorante não suscita outro debate que não o que define suas naturezas como as mesmas, na teoria e na prática. É como se desprendesse da zona do emocional uma força tão destrutiva, capaz de fazer surgir uma história sobre a fraternidade transcendental, daquelas que literalmente ultrapassam barreiras e planos. A força de ‘O Telefone Preto’ está na convergência de todos esses diapasões temáticos, que reflete o melhor de cada um dos envolvidos pelo bem comum – realizar uma obra de roupagem transgressora, pela conversão de tantos fatores acertados em conjunto, e, por isso mesmo, inesquecível.