PRISCILLA, de Sofia Coppola
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Cinebiografias despertam muito interesse, ainda mais quando falamos de figuras cujo talento sobressai o íntimo. Quando temos o retrato de uma época/pessoas que moram no imaginário público, as possibilidades são muitas em termos de abordagem. Justamente por isso tantos filmes são realizados sem, entretanto, qualquer garantia de sucesso.

O caso de Priscilla definitivamente não se encaixa na mesmice do tipo de produção. Mais do que um filme sobre Priscilla ou Elvis, este é um filme sobre Sofia Coppola e seu olhar cirúrgico como cineasta acerca do feminino em constante busca pela (re)afirmação existencial perante a um sistema social patriarcal.

Com uma filmografia marcada por figuras femininas confrontadas pela engrenagem machista, a diretora tem grande habilidade em tratar de figuras reais, conhecidas e controversas, sem comprometer sua interpretação pessoal  acerca dos fatos.

Sua Maria Antonieta não se prende a veracidade dos fatos, mas na interpretação da diretora sobre os mesmos. Em Priscilla, a diretora se utiliza da realidade crua e árida, intrínseca aos fatos, para desenvolver sua interpretação acerca da narrativa, com um olhar que passa bem longe de qualquer romantização.

Chama atenção o afastamento e a maturidade do olhar sobre seus personagens, ainda mais considerando a presença de Priscilla Presley – sujeito do filme – como produtora – o que foi descrito por Sofia como uma grande pressão ao desenvolvimento do trabalho.

À parte de qualquer sentimento de fã da incontestável potência musical e artística que transformaram Elvis em um fenômeno, é notório e aqui destacado, que Elvis era um boy lixo, para dizer o mínimo. Há quem possa considerar em alguns momentos, uma tentativa de justificativa dos atos de Elvis por parte de Coppola, a partir do momento em que ele é retratado como uma reverberação do extremo e constante controle psicológico e físico do qual era vítima. Entretanto, a diretora expõe um Elvis sem vitimismo, enfatizando que os meios não justificam, nem nunca justificaram os fins.

Coppola  também não passa pano ao apresentar Priscilla como a jovem, imatura e inocente recém adolescente que era. Em sua caracterização inicial, ela é retratada como uma colegial qualquer, com a qual poderíamos topar em qualquer entrada ou saída escolar.  A sexualização de Priscilla é progressiva e iniciada pela própria personagem, que persegue um esteriótipo comum à epoca, visto em capas de revistas e filmes, demonstrando o início do processo de anulação de sua autonomia existencial.

O pano de fundo para os acontecimentos também é retratado de forma concreta: uma cidade extremamente pequena e transitória, que funcionava como base militar, durante um período de Guerra e incertezas, marcado pela flexibilização moral.

O encontro de Elvis com Priscilla foi providenciado por um militar que servia na mesma base de Elvis e que agia praticamente como um promoter de convidades para os encontros que aconteciam na casa de Presley. Numa tarde qualquer, Priscilla chama atenção do militar, que a convida para uma das reuniões vips.

O contraste de Priscilla com o ambiente é gritante e a base do relacionamento entre o futuro casal é estabelecido: Priscilla remete a Elvis a pureza de suas raízes, de um período em que as coisas eram concretas, simples, disponíveis, tanto que uma das primeiras frases que ele solta à Priscilla é algo do tipo “minha mãe teria adorado te conhecer”. Convenhamos que não é exatamente algo que você queira ouvir em seu primeiro encontro romântico com seu crush.

Elvis ainda lidava com a recente morte de sua mãe, com quem tinha uma relação extremamente próxima e devota. Assim, o clico paternal e controlador se perpetua e a objetificação de Priscilla como um “totem” é iniciada. A relação de “amor” é subversiva, baseada em controle, culpa, expectativas inatingíveis, apimentada por uma religiosidade tóxica e pela perpetuação do silêncio e anulação como formas de gratidão.

É constantemente proferido pelo próprio Elvis o reforço da gratidão e devoção de Priscilla a ele pelo privilégio de ter sido escolhida no meio de tantas para estar ao lado dele. Dentro desse caldeirão de abuso psicológico, se soma ainda o uso desenfreado de drogas em uma fase crítica de formação psíquica e psicológica pela qual Priscilla se encontra.

A função única de Priscilla era estar disponível a Elvis, independente de qualquer resquício de opinião e vontade que pudesse ter. Como resultado, temos o apagamento existencial de um feminino, cuja força motora atende às expectativas do masculino. Priscilla aceita as drogas, as roupas que Elvis escolhe para ela, o cachorro que lhe dá, a condição de conviver e aceitar as traições públicas de seu marido. Mais que aceitar, Priscilla as absorve de tal maneira que não deixa espaço para qualquer resquício de independência.

Em contrapartida, recebe as migalhas de um amor completamente platônico por parte de Elvis.

O reconhecimento do apagamento da personagem culmina em uma cena muito interessante em que Priscilla genuinamente expõe que não consegue opinar se gosta ou não de uma música. Ela não sabe se tem ou não que gostar, já que foi treinada para não constituir opiniões próprias e individuais.

Sofia opta por constantes enquadramentos fechados, com fotografia separatista e dilatação do tempo, como reforço do isolamento de Priscilla, bem como, seu destaque perante um universo no qual nunca de fato foi integrada.

Somente com o lidar com a maternidade que Priscilla consegue direcionar seu foco para outra coisa além do marido e com isso, passa a construir uma maturidade progressiva. Ainda assim, permanece submissa às vontades de seu marido, mas já há uma apropriação de seus sentimentos, corroborados pelo afastamento de um Elvis individual, mergulhado em shows, festas e drogas.

Nos últimos trinta minutos de filme, é feito um resumo de cenas que retratam a apropriação de Priscilla acerca de seu individual.

Nesse ponto, por um lado, o filme ganha certa fragilidade ao trabalhar a conscientização da personagem de forma tão rápida após o reforço de seu apagamento. O rompimento se concretiza mas a personagem não termina regozijada. Por outro lado, sob uma análise técnica do olhar de Coppola, o rompimento, a quebra de um clico abusivo é o ponto catártico de sua personagem. Priscilla toma a decisão mais difícil da vida dela e o que acontecerá depois depende total e unicamente dela, que terá de lidar com os prós e contras decorrentes de suas decisões.

Independente do posicionamento, o filme é claro em humanizar os fatos no sentido de considerar todos como responsáveis pelos acontecimentos, sem medo de apontar as falhas morais dos personagens, como indivíduos e como sociedade.

Elvis, independente de seu histórico, era quem era e fez o que fez. Priscilla, foi jogada sem saber nadar em um universo do qual se esforçou mais do que podia para fazer parte.

Seus pais, apesar de relutantes, acabaram por terceirizar a tutela de sua filha adolescente a uma equipe de produção de um astro do rock, pautada em figuras mais velhas, representantes da moral e dos bons costumes,  mas que no íntimo, mostram a real flexibilidade moral de um ambiente descontrolado que normaliza o fato de uma garota de 15 anos dormir por 3 dias seguidos em decorrência do uso de remédios. Uma sociedade comandada pela fama e pelo dinheiro, que inevitavelmente apaga qualquer resquício de humanidade e empatia pelo próximo.

Um olhar duro e real, mas necessário, que choca pela identificação com nosso tempo atual e a perpetuação cíclica de comportamentos de uma sociedade fundamentalmente patriarcal, capitalista e individualista, que apesar do avanço tecnológico dos anos, ainda reproduz o atraso e falhas morais da humanidade como coletivo.

O filme tem parceria entre Mubi e O2play e previsão de estreia para dia 04 de janeiro de 2024 nos cinemas.

Confira o trailer:

PRISCILLA | Trailer Oficial | 04 de Janeiro nos cinemas

Quando a adolescente Priscilla Beaulieu conhece Elvis Presley em uma festa, o homem que já era um superstar do rock torna-se alguém completamente inesperado em momentos particulares: uma paixão emocionante, um aliado na solidão, um melhor amigo vulnerável.