"A Fera do Mar" (2022), de Chris Williams
9Pontuação geral
Votação do leitor 3 Votos
9.5

Onde: Netflix

O excelente escritor e diretor Chris Williams consegue colocar a Netflix no auge de sua forma com essa animação lindíssima, “A Fera do Mar”. Williams teve toda liberdade dos estúdios da imensa rede de streaming para criar algo simples, mas que ficaria marcado como, talvez, a maior animação da rede. Simples, mas com qualidade ímpar e técnica na criação dos objetos e dos cenários. O que se vê aqui é de uma imersão raramente vista na Netflix e de fazer frente com os grandes e consagrados estúdios de animação. O diretor traz em seu currículo a assinatura de obras memoráveis como “Moana” (2016) e “Bolt: Supercão” (2008).

A textura dos elementos atravessa a tela e nos faz tocar os monstros, ou os navios, ou mesmo as roupas dos personagens. Numa riqueza de detalhes imensa. De fato formidável o uso da iluminação aqui. A tal textura se traduz num realismo fantástico. Mimetismo bem realizado e assertivo de Chris Williams é uma de suas maiores qualidades. Ele lida facilmente com ambientes amplamente abertos e naturalistas, a vida oceânica, guerras navais, o vasto fundo do mar. Sua ambientação mesclada à trilha sonora de um longínquo mar faz com que o público realmente sinta uma das maiores criações de cenários envolvendo oceano que já pudemos observar em filmes do tipo.

Obviamente em sua montagem, com boa fluidez, o diretor se debruça, por vezes, no ótimo “Como treinar seu dragão” (2010) e seu ritmo forte, principalmente, nas primeiras cenas, permite que a obra fique um pouco frenética, mesmo que tenha espaço para reflexões propostas. Sim, o filme consegue ser lúdico em sua maior parte do tempo, frenético de fato com suas batalhas emocionantes praticamente homenageando filmes referências do gênero; e ainda assim tem êxito em conversar com o espectador sobre pontos importantes para fora da tela emulando uma mensagem excelente de compreensão e empatia.

DE CARONA COM A FERA VERMELHA

Aqui seguimos a odisseia de um grande navio de guerreiros marítimos que travam batalhas épicas contra desconhecidas criaturas oceânicas. Falamos do destemido e famoso navio “O inevitável”, que possui curiosamente um grupo de marinheiros bem distinto. Tais guerreiros se apoiam em contos e misticismos para que se livrem, segundo eles mesmos, de monstros terríveis, ou de alguma maldade abominável do mar. Sobretudo, ganham prestígio junto a seu rei e rainha, faturam seu soldo e seguem tentando dar certo significado às batalhas.

“O inevitável” é comandado por um dissimulado, penoso e autoritário Capitão Corvo (voz de um ótimo Jared Harris), que ao lado de seu imediato sucessor Jacob Holland (voz de um notável Karl Urban) seguem anos a fio a temida Bravata Vermelha: um monstro imenso, enigmático, imponente, assustador, dono de lendas que sustentam os objetivos e razões de grandes navegações. No passado, a Fera Vermelha teria sido responsável por ter arrancado um olho do Capitão Corvo.

Ao irem mais uma vez atrás da voraz Fera Vermelha, Jacob e Corvo lidam agora com um problema ainda maior: a pequena Maisie, uma valente e ousada menina órfã em fuga, entra escondida no grande “Inevitável” para poder desbravar de certa forma os confins do oceano e desconstruir o mito dos monstros “implacáveis”. A pequena é admiradora dos duelos navais dos quais o “Inevitável” já participou. Tudo aprendido com uma literatura profunda, um tanto parcial, polêmica e curiosa sobre a história dos navegadores, das feras e dos feitos. Vale dizer que ela é fã também de Jacob.

PONTUAL EM SUA CRÍTICA SOCIAL

Numa pegada bem “Moby Dick”, famosa obra da literatura inglesa, de Herman Melville, o diretor Chris Williams tem êxito ao propor muitas análises de cunho social num curto espaço de tempo (quase que no desfecho da obra), ao apresentar seus conflitos. Por que Moby Dick? Porque a pequena Maisie e o agora capitão Jacob são atirados na água e por lá vão compreender melhor o oceano e seus animais, principalmente a Bravata Vermelha. Aqui temos a fórmula batida de vários estúdios, mas que sempre deu certo. Execução segura: a criança ensina o adulto e então comanda o filme. A forma proposta é rica e linda de ser aprendida.

Aqui, Williams – em sua dramaturgia – provoca no espectador debates escolásticos acerca do racismo, inclusão, abandono de menor, maus tratos de animais, direitos trabalhistas, escravidão, entre outros. Tudo isso bem executado e, de certa forma, rapidamente. Ele não se perde em linguagem panfletária, nem o quer.

E não há como negar: obras infantis são necessárias para que consigamos ter nossas doses de lições diárias e desconstruções rigorosas de nossa essência. Razões inimagináveis para se iniciar uma guerra, que povoam o inconsciente coletivo, são rechaçadas de maneira primorosa pela voz da pequena Maisie. Inquieta e notável, ela questiona tudo e todos, alimenta uma necessidade de saber mais sobre todas as coisas. Eis que surgem questionamentos a nós mesmos: há base suficiente para se iniciar uma guerra? Após tais guerras alcançarem a superfície, frequentemente muito inocentes têm suas vidas ceifadas.

E, pela afirmação de que o interesse mercadológico em exacerbo (guerras, exploração ambiental e animal) é necessário para movimentar a civilização, como ilustrado pela Monarquia do filme, nós temos os eventos ali como algo normal. Como a normalização do que de fato é um absurdo. É entendível. Mas com a pequena Maisie não tem isso. As crianças das animações nos brindam com reflexões jamais pensadas antes. Seríamos nós as Bravatas Vermelhas? Ou as ameaças diversas?