Raul (Roney Villela), um escritor desempregado, vive sonhando e levando a vida na maciota, se contentando com o mínimo. Quando é despejado e abandonado por sua esposa, tem de encarar o peso de suas escolhas e a concretude da vida real. É justamente neste cenário em que conhece Cássia (Endi Vasconcelos), uma jovem cheia de vida que faz com que ele ressignifique seu apreço existencial.
Raul não se difere dos que se tacam pela janela de seu prédio, que de acordo com ele, “achavam que sabiam voar, mas devem ficar putos por perceberem não ser mais forte que o concreto com o qual se deparam no fim”.
O universo literário de Charles Bukowski é percorrido através da jornada de transformação do protagonista Raul, que começa como o outsider bufão, remetendo as obras de início do autor, e evolui para sombria angústia da solidão espiritual, com pitadas de um humor sarcástico, característico do escritor. Raul é a personificação do proibido bukowskiano, bem como do autor em si, proliferando aqui e acolá citações do mesmo. Nesse sentido, a escolha de Roney Villela é um dos acertos do filme. O ator concentra de forma madura em sua construção o selvagem combo bucólico, depressivo, sarcástico e boêmio do escritor.
O mesmo ocorre para a (sempre grata) presença de Everaldo Pontes. O ator interpreta um dos empregadores de Raul, dono de uma oficina mecânica, que doa a ele uma caixa de livros “proibidos” por sua mulher, religiosa, numa clara referência a censura à obra do autor, acusado de marginal e obsceno. A obscenidade ainda reverbera para outra presença importante da obra de Bukowski – as mulheres.
A referência feminina no filme, assim como para o autor, é uma constante, de forma que, ainda que o protagonista siga sua jornada própria, ela é sempre intermediada pelo feminino.
Longe de qualquer pretensão de análise da obra do escritor, é relevante frisar a importância das mulheres na escrita de Bukowski, que nutria por elas uma paixão conturbada e conflitante com outra paixão – o álcool. Por isso, apesar de ser considerado um poeta, um romântico, é também rechaçado, acusado de objetificação de corpos femininos.
Nesse sentido, o filme acerta ao perpetuar a dicotomia da relação do autor com o feminino. Corpos nus são uma constante no filme, tanto feminino quanto masculino, evitando a gratuidade, não de forma compensatória, quantitativa, mas sim, em prol de uma provocação maior. Os pontos de virada de Raul sempre se dão a partir do feminino, seja quando está sem motivação ou quando decide por fim se motivar, de forma que demora a vir a responsabilização por sua própria existência.
Contudo, esteticamente o filme peca pelos excessos. Cortes abruptos e transições dilatadas, bem como a recorrente utilização de câmera fixa acabam por ralentar e/ou “fatiar” o ritmo da narrativa. A fotografia crua e a luz dura revelam detalhes da locação, ressaltando o simulacro da ambientação e acusando o tom de estúdio em diversos momentos. Tais escolhas se justificariam por se tratar do universo bukowskiano, mas o descaso ordenadamente premeditado acaba por afastar o espectador.
No geral, o filme funciona ainda que não haja a absorção do contexto literário pontuado neste texto. Entretanto, em caso positivo, verificar-se-á a pretensiosa estrutura do roteiro, que homenageia a obra de Bukowski e seu universo dos “despossuídos”, cuja “morte já tentou levar várias vezes. Mas sempre que ela toca a companhia, só consegue dizer: Vamos tomar mais um copo e foder a noite inteira, Capitão”.
A Morte Habita à Noite | Trailer Oficial
“A Morte Habita à Noite”, um filme de Eduardo Morotó, estreia em breve nos cinemas! Sinopse: Raul, um escritor desempregado, serve-se de outra taça de vinho enquanto um vizinho de cima salta para a morte. Sua namorada Lígia fica claramente mais aflita com o incidente, o que antes poderia ser mais facilmente digerido, agora não é mais.