Onde: cinemas 1/12
A jovem cineasta escocesa, Charlotte Wells, faz sua estreia nas telonas de maneira formidável e memorável com este “Aftersun”, produzido pela A24. Antes desta obra, ela tinha apenas 3 curtas-metragens. Aqui, Wells nos brinda com um cinema rico em detalhes íntimos, expressões e atuações marcantes, algo que poderia soar como uma produção leve e singela devido à sua narrativa de reconciliação, mas ela vai sempre além, ela quer mais. E Wells sabe provocar nossa inquietação. Seu cinema de reminiscências é fotográfico.
Tudo aqui esbanja qualidade técnica altíssima. Imagem (luz do Sol sempre presente) e som chegam a se completar dando à obra a nota máxima e que fará o espectador certamente revisitar o filme num futuro e também em suas memórias particulares, como eu mesmo já o fiz. Sem contar com o fato de que, ao acabar a película, em prantos, o pai espectador pode abraçar apertadamente seu filho. A mensagem está cravada, cada quadro de Wells catapulta em nós a necessidade gritante de aproveitar ao extremo todo segundo ao lado de nossos filhos.
Não há mundo digital escapista (ou coisa que o seja semelhante) que subtraia ou que arranque da diretora, tampouco do espectador, a necessidade de saber aproveitar o momento que a relação pai e filho exige. Wells emula isso com excelência, com bastante assertividade, porque de fato ela viveu aquilo com seu pai. A obra chega perto do que chamamos de uma autobiografia. Ela mesma confirma isso.
A discussão e a produção de resultados aqui é de um imediatismo significativo. A reflexão – em mim por exemplo – é profunda e causou uma sensação até de ligeira frustração. Às vezes, não elaboramos com nossos filhos aquilo que a expectativa deles exigia ou queria para certos momentos. Quando estamos imersos na experiência do filho, como o som e a imagem da produção de Wells sugerem, a nossa felicidade (minha) é plena, é exuberante. É como se estivéssemos realizando um sonho. O nosso, o do filho, o da convenção, o do momento. Porém vale sempre lembrar que aquele recorte pai e filha do filme tinha algo mais intenso por trás e talvez até assustador. Méritos de Charlotte Wells.
Entrecortado com as lembranças incrivelmente íntimas das quais o filme já tratava, a jovem diretora joga imagens soltas que provocam em nossa mente desfechos diversos. Realmente direções variadas para aquela dupla de protagonistas. Altivez. Enquanto somos sugados por um deleite de memória pura e bela, uma imagem largada indica algo grosseiro no passado daquele pai, um quadro aponta para uma situação talvez de sufoco daquele pai, ou mesmo de desespero daquele jovem sujeito. Um corte na pele, o mar à noite, as capas de livros, as meditações: tudo inserido dentro de um símbolo maior. Nostálgico. Será que foi assim com a jovem Charlotte Wells de 11 anos e seu pai de 31? Todo o terceiro ato do filme te suga emocionalmente de maneira poderosa.
As memórias protegem Calum e protegem Sophie
Obras recentes e ótimas como “Roma” (2018), “Belfast” (2021), “A mão de Deus” (2021) e “C’mon C’mon” (2021) tratam de reminiscências e infância com o mesmo carinho e primor que vimos aqui, mas acredito que o roteiro de Charlotte Wells é o grande trunfo da jovem diretora. Ela consegue alcançar um minimalismo mais claro, um elo fortíssimo com seu pai e tem êxito ao apresentar variados momentos de destaque na película. Como dito, momentos fotográficos. Por muitas vezes, vemos átimos tenros, um amor fabuloso de pai e filha, amor que não é perfeito e está envolto por um drama pessoal evidente (Well faz bem isso), mas convincente acima de tudo.
O filme segue – por meio de lembranças muito vívidas – tudo o que envolveu uma marcante viagem à Turquia entre a menina Sophie e seu jovem pai Calum há 20 anos. E estamos tão imersos nas claras memórias de Sophie, quanto ela mesma. Hoje, com seus 30 e poucos, em meio a uma melancolia desconhecida, ela “viaja” ao tal local por meio de fitas VHS gravadas no passeio. Isso ocorre graças à trilha sonora que pontua o filme e emana um saudosismo noventista e também devido à forma como Charlotte Wells filma, combinando seus planos detalhes à filmagem que a própria menina Sophie fez com sua pequena câmera de mão. A trilha indica exatamente o que está acontecendo. Aquelas câmeras de quando não havia um celular para fazer tal função.
Paul Mescal como um pai de 31 anos está num nível excelente de atuação. É possível perceber toda a energia que ele entrega para aquela viagem ímpar com a filha, ele é versátil e logo sentimos que há camadas vestindo aquele pai, muito pelo fato de que ele convence ao sofrer, chorar, ser frio e se machucar em silêncio sem que a filha perceba. Já a fantástica Frankie Corio, em meio a suas descobertas, atinge uma atuação real, fazendo o espectador entender piamente que aquela pequena pessoinha já passou por situações maduras e realmente complexas de vida. E ambos batalham – com amor, proteção e um misto de frieza – para terem uma relação de harmonia e união.
Aftersun entra fatalmente no topo dos melhores filmes deste ano até aqui. Somos testemunhas de uma montagem de alto nível, como de fato uma lembrança é e deve ser desenhada no cinema. A Sophie melancólica (na boate frenética e catártica) que sofre hoje buscando e reconstruindo imagens a fim de formar um enredo para entender o processo que rodeava seu pai é um pouco de nós. O Nós de hoje e de ontem. Jamais entenderemos certos rumos de alguns processos do nosso presente da vida adulta, mesmo que nossas memórias fotográficas se esforcem para nos ajudar. Sofremos e aceitamos. E sentir isso no cinema com a astúcia de Charlotte Wells é único.