Onde ver: Cinema
7.8Nota da Hybrido
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8.6

Quando o cantor e compositor sul-africano Lebohang Morake, conhecido como Lebo M., entoa no idioma zulu a plenos pulmões: “nants ingonyama bagithi baba”, que significa “aí vem um leão, papai”, estamos diante da nova versão de “O Rei Leão”. Seguramente a voz de Lebo M. compõe uma das maiores aberturas da história do cinema. O diretor Jon Favreau conta que não produziu especificamente um live-action, mas sim um remake da atemporal animação de 1994 para as telonas com sutis mudanças. 25 anos depois ainda consegue agradar.

Quando Favreau fala não ser um live-action, ele explica que tal nomenclatura se utiliza de humanos inseridos na trama em frente às câmeras, o que não é o caso aqui. É “quase” um live-action. A obra é tecnicamente impecável. Você se encontra nas savanas africanas realmente. Tudo é à base de inserção de realidade virtual. Um filme quase que inteiramente criado em CGI (computação gráfica). Desta vez são 30 minutos a mais que o desenho de 1994, que contava com 1h28 de obra. A nostalgia estonteante obviamente ainda se faz presente.

A história é a que conhecemos. Após a horrível morte – pior morte do cinema para mim – do Rei Mufasa, o jovem leãozinho Simba foge de seu reino. Tamanho realismo aqui desperta um choque ainda mais forte em relação à morte de Mufasa. Após fugir, Simba tem sua resiliência, aprende responsabilidades e consegue dar a volta por cima em seu retorno. O arco perfeito do herói traído.

Vale dizer que a Disney se baseia na história shakespeariana de Hamlet. A trama de hoje não conta com mudanças mais profundas. Ela se apoia bastante em nossas já conhecidas emoções para se sentir confortável diante do público 25 anos depois.

NA PEDRA DO REI

Jon Favreau usa sua habilidade com antropomorfização. Praticamente como em seu ótimo e premiado “Mogli, o menino lobo” (2016), também dos estúdios Disney. Antropomorfizar significa inserir ações e características de humanos em elementos da natureza, como com os animais. O problema aqui na savana africana de “O Rei Leão” é que isso não saiu com a exímia sintonia com que tivemos lá em Mogli. O destaque é que Mogli leva o Oscar de melhores efeitos visuais. Quando o ator que entregou um maravilhoso Mogli, Neel Sethi, interage com o urso Baloo e com a pantera Bagheera; fica clara lá uma melhor interação, maiores percepções assertivas das reações e das expressões dos animais. Lá convencem e passam por diversos sentimentos humanos. Em “O Rei Leão”, temos uma acentuada falha nessa interação.

Falta ritmo. Não se traduz aqui a emoção que conseguimos captar no desenho de 1994. Em 1994, Simba e Nala rolando pelo chão após seu reencontro é memorável, cena carregada de risos, carinho e outras emoções. Aqui em 2019, não se percebe isso na mesma cena. É tudo mais sério. Certamente pelo nível elevado de realismo perfeccionista com que os animais foram reproduzidos. Em termos simples: ainda faltavam mais das variadas expressões a Simba, Mufasa, Nala e Zazu, por exemplo. Porém constata-se o tiro certeiro da antropomorfização nas falas dos animais. As bocas acompanham os perfeitos movimentos de fala. Óbvio que no idioma original. Ponto para Favreau.

Se falta expressividade a alguns destes animais realistas, a obra tende a se pendurar no excelente elenco de atores. As vozes são nossos apoios. Temos Donald Glover (Atlanta) dando voz ao Simba adulto e a cantora pop Beyoncé encarnando a Nala adulta da vez. As vozes combinam bem. E, quando cantam juntos o ápice “Can you feel the love tonight”, percebe-se o carisma intenso diante da telona.

O destaque dos atores de fato está no quarteto: Timão (Billy Eichner), Pumba (Seth Rogen), Scar (Chiwetel Ejiofor) e Mufasa (James Earl Jones). Eichner e Rogen emprestam vozes caricatas e espalhafatosas a seus personagens. São fiéis à dupla que tanto nos cativou: Nathan Lane fazia o Timão e Ernie Sabella, o Pumba.

Ejiofor faz um Scar maravilhoso. Voz dissimulada, fala lenta, calculista e manipuladora. Bela homenagem ao Scar de Jeremy Irons. Estamos diante de um dos maiores vilões do cinema. Mas nada é tão formidável do que ter toda a imponência da voz pontual e intimista de James Earl Jones. É isso: Mufasa de 1994 está aqui de novo. Magnífico trabalho de voz do eterno Darth Vader. O cara sempre foi e é apenas Mufasa e Darth Vader.

É importante cravar que a música aqui funciona como elemento essencial à narrativa, ela significa algo. Está sempre inserida sem exposição barata. Por exemplo, as incríveis “Be prepared” e “The lion sleeps tonight” antecipam com precisa riqueza de detalhes dois grandes momentos da obra. A canção “Spirit” é o tema da vez. É a nova produzida especialmente para o longa. Beyoncé comanda com coral gospel ao fundo, mesclando sua grandiosa pegada pop ao R&B e ao Afro Beat. Tudo isso com sua marcante e afinada voz poderosa. A cantora escreve contando com a ajuda dos compositores Ilya Salmanzadeh, Labrinth e Timothy McKenzie.

Em termos de novidade, não há um impacto aqui. A música não compete – por exemplo – com a sensação do filme de 1994, que também esta neste: a inesquecível “Circle of life”. Porém a canção da artista pop injeta um poder à personagem Nala que não tivemos na animação.

HAKUNA MATATA

Se torna repetitivo citar o ponto alto da obra: Timão e Pumba. Em termos de expressões, aqui vemos melhores encaixes com a dupla eterna. O diretor se sente à vontade para encher o suricato e o javali com primeiros planos. As expressões mais intimistas – inclusive – despertam muitas gargalhadas. O esforço dos atores Seth Rogen e Billy Eichner – inclusive fora do set – é percebido no primeiro segundo dos dois em cena. Diálogos rápidos, piadas diversas e pontuais, tudo acompanha os dois.

A simbiose chega ao ápice com a nova Hakuna Matata, numa pegada que mistura alguns gêneros musicais. Na voz, tudo perfeito. Eichner e Rogen lideram a versão. Simba, de Donald Glover, também vai bem ao cantar. Ainda um pouco mais do mesmo: falta expressão a este trio na sagrada hora de Hakuna Matata. Mas, ao menos, a expressão corporal é garantida. Movimentos lentos e cômicos do javali com os saltos acelerados do suricato são o deleite da vez.

O retorno dos compositores Lebo M. e Hans Zimmer faz bem à trama. Preserva a assinatura monstruosa clássica das melodias e letras conhecidas, além do maravilhoso som da savana africana e dos animais. O exagero em relação ao extremo realismo se dá apenas porque mexe nossa reação. O trabalho é perfeito. Mas tira nossa fantasia. Um leão que canta, um suricato que faz piadas e um javali desgovernado: faltou a eles por muitas vezes um toque de fantasia.

Falta uma mudança mais significativa na forma de contar esse roteiro. E “O Rei Leão” é fantasia pura, que nos remete sempre ao desenho de 1994. Mesmo com propostas completamente diferentes, a comparação é inevitável. No geral, a Disney acerta. Abarca novos fãs. Claramente “O Rei Leão” segue estonteante. O arco famoso do herói traído, sua resiliência e sua volta por cima continua nos transmitindo a sensação de recompensa como tivemos também em 1994. Desejei apenas mais fantasia ou o exagero em fantasiar.