Onde: Netflix
Finalmente a Netflix trouxe ao ar a derradeira temporada de Peaky Blinders para os fãs. Como foi? Grandioso. Detalhista. Mimetista. Roteiro maravilhoso. Montagem perfeita. Conseguimos acompanhar um baita show ser concluído de maneira épica. Anthony Byrne dirige os 6 últimos episódios, produzindo assim uma coesão maravilhosa. E sim, os últimos 2 são excelentes. Bom de serem inclusive revisitados. o ar noir do 6º episódio é seguramente um dos melhores da televisão em termos de texto, montagem e foto. A série consegue responder todas as questões levantadas na última temporada e até em anos anteriores. Sabemos agora quem traiu de fato Thomas Shelby.
Com toda licença e liberdade histórica, finalmente nos aproximamos do que foi feito da relação do show com o nazismo vindouro e com todos os desdobramentos após o surgimento de um personagem real da história britânica na 5ª temporada: Oswald Mosley. Influente nas câmaras do Reino Unido, ele foi o responsável direto pelo maior flerte da Inglaterra com o fascismo. Criou o partido União Britânica de Fascistas e Nacional-Socialistas, em 1932. Por pouco, Londres não teria entrado na 2ª Guerra Mundial ao lado de Mussolini, Hitler e do monarca japonês Hirohito. Como vimos na 5ª temporada, Churchill joga para escanteio tal flerte.
A obra continua fazendo o melhor de seu texto: mesmo que ficcional, se comunica perfeitamente bem com aquilo que foi real. Com o que aconteceu de fato nas camadas políticas da época. A intertextualidade do criador Steven Knight sempre foi de uma genialidade ímpar. Ele emula em nosso imaginário como os Peaky Blinders poderiam ter contribuído para decisões formadoras de destinos. Tanto na esfera política, quanto na social. Quantos polêmicos e controversos Thomas Shelbys teriam existido a fim de evitar a ligeira e silenciosa admiração da Inglaterra por Hitler, algo que de fato era bem iminente? E quantos eram apenas bandidos comprometidos com seu maior interesse?
Knight comandou algo que pode ser aplicado hoje facilmente, não que tenhamos de seguir os “malditos” Peaky Blinders como exemplo de algo. Longe disso. Todos eram ambíguos atrás de seu único interesse. Pregressos. Mas em salas chiques, de casarões milionários, há pessoas misturadas de diversos tipos de ideologia maquinando por melhores resoluções que unicamente os equilibrem, de fato pouco se importando com o povo. Mas uma coisa foi certa na mente suis generis de Knight: a varrida que ele dá no fascismo com o design de produção dos dois últimos episódios é de uma beleza magistral e será atemporal.
Tiros diversos, fogos, uso de gás, máscaras, dinamites, explosões, mortes gráficas, ameaças, tudo em prol de cortar um mal pela raiz, numa consolidada capitalista Inglaterra: a união nazifascista. Temos um destaque ululante para a cena do 3º episódio em que Ada Shelby (a maravilhosa Sophie Rundle) vai a uma reunião com o americano influente Jack Nelson e Oswald Mosley sobre a apresentação de Nelson aos contatos fascistas dos Shelby. Isso é fantástico. A cena é um dos pontos altos desta temporada junto às aniquilações do final da série. O texto poderoso que envolve Ada vai além dos bons costumes. Ali reaprende-se a leitura de termos e definições políticas de maneira impecável. Termos que infelizmente até hoje precisam ser bem explicados e reafirmados.
Se não houver exemplos com sua correta aplicação histórica, como houve naquela sala comandada por Ada, ficaríamos no negacionismo eterno como ocorreu ali enquanto Jack Nelson assevera ver Ada com “batom e diamantes”. Um deleite, foi quase igual à falácia pérola porca de hoje: “um socialista de iPhone?”. Mas Knight deixa para ajustar arestas mais gráficas, viscerais e impactantes perto do finalzinho.
Os malditos Peaky Blinders e a grandeza da última temporada
Por meio de mulheres fortes como Ada, Polly, Lizzie, Esme, Gina e outras, vemos a série destilar classe ao escancarar para o espectador o papel da mulher naquela sociedade absurdamente sexista dos anos 30 no Reino Unido. Estas mesmas aqui citadas foram evoluindo e sendo decisivas para muitos caminhos da obra. De novo, por exemplo, Ada, mesmo que desacreditada por duas figuras inescrupulosas naquela tal sala de reunião do 3º episódio, consegue falar com precisão sobre todo tipo de assunto abordado na sala. E ela mesma conclui o encontro. Fora isso, há a lembrança constante sobre o que Polly poderia decidir em relação a certos temas. Michael Gray e Thomas Shelby parecem necessitar dela, daquilo que a falecida atriz Helen McCrory emulava na obra.
Em relação às tramas e aos conflitos visuais de campo, Thomas parte para os Estados Unidos a fim de tentar unanimidade e excelência na venda de seu produto aos canadenses e estadunidenses, mas obviamente ele esbarra na política e na ganância de uma sociedade que cresce massivamente com ilicitudes. E fatalmente ele precisa beliscar um pouco tal montante. Ou tudo. E o ópio ganha destaque aqui. A barreira agora é o influente empresário Jack Nelson. Com ele por perto, Thomas ganharia a entrada pelo mar de Boston.
Na luta de Thomas Shelby com seu próprio ego, vemos mais gangsters aparecendo na narrativa e engrandecendo o show. Obviamente sabemos que Tommy não se sentiria bem negociando com tais fascistas donos da máfia de Boston e do alto escalão britânico. Nem na Inglaterra, tampouco nos Estados Unidos. Eis que deliberações na surdina abrem espaço para o retorno de um ótimo personagem da série: Alfie Solomons, um excelente Tom Hardy. Parceria que sempre seria lucrativa para a parte que desagradaria a cúpula nazifascista. E quem de fato se beneficiaria com essa luta dos Blinders vs Nazi? Os judeus da América do Norte.
O Shelby de Cillian Murphy, amadurecido agora, entra em conflito existencial de uma maneira bastante aguda. Como algo que a série jamais mostrou. Por motivos que vimos em tela, sem spoiler aqui, ele tenta a todo tempo corrigir o curso de algumas de suas ações e consequências, além de alguns funcionamentos defectivos da sociedade de Birmingham. Uma “persona” que quer “tentar fazer o bem”, mas que obviamente não consegue largar sua sinistra “sombra” (bem Junguiano aqui).
As grandiosidades técnicas e de roteiro ganham muito destaque nos tais dois últimos episódios, quando vamos atrás do traidor. Temos um excelente Paul Anderson, que faz um violento, explosivo, leal e falho Arthur Shelby buscando remissão e tentando se manter consciente (não sóbrio) para defender a família e também à sua própria essência. Satisfação. Sua remissão passa por uma das cenas mais pesadas da série. Algo como “The Sopranos” fez bastante. Violência que faz muita gente fechar os olhos.
O finalzinho – frases pesadas e, sim, a boa violência
E, quando eles partem para o conflito final contra os fascistas, há algumas das melhores citações do show, meio que entregando o ar de esgotamento por tudo aquilo pelo qual passaram juntos e também a insatisfação do enfrentamento com o odioso: “Há quanto tempo estamos mortos? Seja lá como for, vou preparar os drinks e te espero”, Arthur diz. O abraço entre Cillian Murphy e Paul Anderson foi digno de despedida chorosa e penosa de um épico, como se soubessem da magnitude do que tinham construído juntos na TV.
Assim os Peaky Blinders enfrentam todas as consequências de seus atos. Os acertados e os errados. É como se o divinal (ou o cigano, como eles bem grafam) punisse a família também com perdas dolorosas, não apenas lhes provendo lucro. E já em meio à linda cena de batalha épica, outro grifo de Knight: “Não mato cães, mato fascistas”. Sabemos do sujeito sujo e muitas vezes vil que é Arthur Shelby, mas não nos chocamos com o dizer. Vibramos com a proposição. Sabendo que ele ali falava da aliança de Hitler e Mosley, que ganhava pano em Berlim.
Então, nos minutos finais, sobressai o alerta repetitivo da dramaturgia de Steven Knight e Anthony Byrne para nossos dias. E, quando grifo que a beleza e o mote de Peaky Blinders será atemporal e grifo também que a forma pela qual ele tenta banir um mal pela raiz se fez necessário ser repetitivo, é porque aqueles ratos do show se apresentam ainda hoje nas camadas sociais mundo afora com uma facilidade de expor seus pensamentos travestidos de livre pensar. Como se fossem algo perto de uma verdade absoluta (que nem mesmo o filósofo Immanuel Kant, que muito tratou desse conceito, disse existir). O debate é eterno, é contínuo… pela ordem dos “Malditos Peaky Blinders”.