"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" (2022), de Dan Kwan e Daniel Scheinert
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9.2

Onde: Cinemas

 

Em certo momento da “parte 1” de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, me peguei pensando no Sam Raimi. Na verdade, me peguei pensando o que é ser livre para criar e, no contexto de um filme sobre multiverso, lembrei do diretor de Evil Dead. Até que ponto ele pôde criar em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Até que ponto as amarras do MCU, da produção de Kevin Feige ou mesmo do que “se espera” do público em um blockbuster, influenciaram no resultado final do último filme da Marvel. É impossível comparar o fator “produto” das duas obras, entretanto, me peguei pensando no Raimi criador, no fator humano por trás da câmera, aquele que entregou tanta coisa boa e nova ao MCU, mas que sofreu com a mão pesada de um grande estúdio e seus checklists comerciais.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo tem basicamente a mesma premissa de Doutor Estranho 2 (ou vice e versa). Uma grande ameaça assola o multiverso e o “herói” recebe a ajuda de alguém que conhece as leis de viagem por esses mundos para deter a ameaça. A heroína no caso é Evelyn, a imigrante chinesa e dona de uma lavanderia, interpretada pela sempre excelente Michelle Yeoh. É difícil falar mais sobre a história do filme sem estragar as surpresas que o tornam uma incrível jornada, mas ela ainda envolve família, kung-fu, problemas com impostos e muitas piadas sobre bunda.

Essa loucura toda é comandada pela dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert, responsáveis pelo bizarríssimo e ótimo Um Cadáver para Sobreviver, e com produção da AGBO dos irmãos Russo. Os Daniels, como são conhecidos, exploram até o último frame possível a criatividade e a loucura de se criar um filme sobre multiversos. Para cada versão de mundo ou da própria Evelyn, os dois brincam com o aspecto da tela, frame rate, iluminação, maquiagem, além de elementos cenográficos que simplesmente são versões dos personagens, como uma piñata ou uma pedra. E isso assim, só o que vem a mente de primeira.

 

A Força de Everything

 

A grande força de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo está na liberdade criativa dada pelos produtores e pela A24 aos realizadores do filme. Não é à toa que os dois não aceitaram comandar o multiverso da série de Loki, para focar na própria produção. É perceptível, seja na criação de cada elemento bizarro ou incrível ou mesmo bizarro-incrível do filme, a mente e as ideias da dupla. E talvez o grande trunfo dos dois esteja na criação de uma obra tão incrivelmente visual, que a explicação para multiversos e realidades paralelas, não precisam de muito tempo ou conceitos extremamente científicos para serem explicadas. É como se a gente pegasse A Origem, de Christopher Nolan, tirasse toda a parte do personagem do Elliot Page, e tivesse dois minutos do DiCaprio contando como os sonhos funcionam. Embarcaríamos na loucura visual e sensorial da obra e não ficaríamos sentados ouvindo uma palestra de cinco em cinco minutos.

Mesmo com todo esse espetáculo visual, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo não seria a mesma coisa sem o elenco escolhido pelos diretores. Especialmente o trio principal formado por Michelle Yeoh, Ke Huy Quan e Stephanie Hsu. Yeoh tem uma delicadeza e uma sutileza no drama e comédia que se faz parecer outra pessoa quando precisa encarar as cenas de luta ou poses de Kung-Fu. Aliás, a metalinguagem para os multiversos de Evelyn, que conversam diretamente com a Michelle Yeoh que conhecemos de outras produções é incrível. O mesmo vale para rever Quan, o Short Round de Indiana Jones e o Data de Os Goonies, como Waymond, marido de Evelyn.

A força do trio é o coração do filme. Maior do que as cenas de ação e luta, a de Waymond contra os guardas é incrível e todas as de Evelyn são hipnotizantes, a produção é uma discussão sobre família, ressentimentos, escolhas e amor. O amor em todas as suas nuances e versões. Ora, se falamos de multiverso e quantos de nós podem existir para cada escolha diferente que fazemos, porque não mostrar que o amor também pode se manifestar em cada ação ou reação que a vida nos provoca. Esse toque genuinamente sincero na discussão do que é amar foi uma grande surpresa em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.

Com tanto para ser dito e, principalmente, mostrado, o filme sofre um pouco com a sua duração. A parte um, mesmo sendo a mais interessante de acompanhar, se prolonga e por vezes cria uma sensação de cansaço com o ritmo frenético imposto pelos diretores. Isso acaba prejudicando a parte dois, que tem a missão de ser a parte mais sentimental, mas que já recebe o espectador de cabeça cheia. 

Mesmo assim, o excesso não estraga a experiência de liberdade criativa que é Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. O filme é sim tudo o que vem sendo falado sobre ele: um dos melhores filmes do ano e que merece ser visto em tela grande, vide o sucesso de bilheteria do filme. É uma experiência real de cinema, de imersão e de encantamento com o que é produzido.

Parece que esse é o grande mote do cinema em 2022: a experiência do espectador, aquela que vai ficar com ele ao longo dos meses. E nisso, Evelyn, Waymond e os Daniels  dominaram 2022 quando o assunto é Multiverso.