Em momentos de crise extrema, em que não há qualquer possibilidade de controle, alguns psicólogos aconselham a se ater ao básico: respirar, comer e dormir. Mas o que fazer quando o básico é inacessível?
O novo filme do diretor François Ozon navega nessa maré. O diretor aborda a história de André, um senhor de 85 anos, ativo e independente, que sofre um AVC irreversível e fica extremamente fragilizado, preso a uma cama de hospital e a um corpo que não corresponde mais às suas necessidades. Diante disso, ele pede a uma de suas filhas que lhe ajude a morrer e acabar com seu sofrimento – diante da impossibilidade de levar uma vida próxima da qual considera digna a sua pessoa.
Algumas provocações do roteiro são velhas conhecidas do público como o valor a vida e a autonomia acerca da mesma, mas o filme vai além ao direcionar o debate a outros tópicos como a validação do direito a este tipo de questionamento, em uma sociedade completamente desigual, em que a premissa de viver é por si só um sofrimento longe de qualquer dignidade. Nesse sentido, o protagonista e seus familiares reconhecem o privilégio de André, que durante e até o fim de sua vida viveu confortavelmente, com o domínio de poder de decisão que somente uma posição economicamente alta poderia proporcionar – fato sublinhado pela personagem de Sophie Marceau.
O questionamento reverbera ainda no procedimento a ser realizado – por não se tratar de paciente em estado terminal, a eutanásia não é aceita em Paris, mas sim na Suíça, sob a condição de que o próprio paciente esteja lúcido o suficiente para ingerir a substância responsável pelo término de sua vida. André e suas filhas começam então uma série de tratativas burocráticas, que são pontualmente julgadas e confrontadas por pessoas sempre excluídas desta “bolha familiar”.
Para que tal narrativa se sustente, o filme foge de qualquer abordagem ou recurso melodramáticos, colocando a questão burocrática e jurídica do procedimento a frente das emoções profundas dos envolvidos. Todo e qualquer rompante afetivo é imediatamente interrompido pelas próprias personagens, que por muitas vezes se retiram de quadro abruptamente.
Apenas quando todo trâmite está resolvido é que a emoção recebe sinal verde. Entretanto, após tanto tempo de automatização, é com um total emaranhado de emoções e estranhamento com que a filha, personagem conduzida cirurgicamente por Sophie Marceau, se apropria do resultado do processo.
O filme não teria sentido sem André Dussollier, que conduz o espetáculo com a maestria digna do grande ator que é, trabalhando em seu protagonista, além da perfeição metódica da composição corporal, a dicotomia entre a prepotência de quem se acha absoluto e a fragilidade imposta ao personagem, decorrente da realidade de sua condição física.
O roteiro é baseado no livro escrito em 2013 por Emmanuèle Bernheim, amiga íntima de Français Ozon, com quem manteve uma parceria artística frutífera em diversos filmes do diretor, como “Amor em cinco tempos” (2004) e “Sob a Areia” (2000). A escritora viveu essa situação com seu pai, o colecionador de arte André Bernheim.
Um filme que definitivamente faz jus à ida as salas de cinemas.