Onde: Cinemas
Eis que um momento que parecia superado do cinema brasileiro retoma, e parece ter força para reaquecer o mercado, além de trazer novas fornadas. ‘Predestinado’ não é apenas o maior lançamento da semana nos cinemas (mais de 650 salas), como isso raras vezes aconteceu em 2022 com um filme brasileiro. O resultado ainda são bilheterias tristes e muito aquém das possibilidades, mas já bastante superior ao ano passado. A estreia de Gustavo Fernandez em longa metragem é uma aposta arriscada para retomar bilheterias, tendo em vista que há muito tempo um filme do gênero não repete os números de ‘Chico Xavier’ e ‘Nosso Lar’.
O diretor do bem sucedido remake de ‘Pantanal’, no entanto, independe dos números finais para mostrar seu valor. Mesmo sabendo que a seara onde ele se encontra já produziu muitas obras de bela retórica e realização em estado oposto, Fernandez arregaça as mangas para tentar superar também as limitações do conceito de biografia. Zé Arigó foi um médium a princípio diletante, morador da pequena Congonhas, em Minas Gerais, que em determinado momento da vida começou a receber as aparições do médico alemão Dr. Fritz. Das aparições até as incorporações e as chamadas ‘curas espirituais’ – operações sem cuidado algum que salvaram inúmeras vidas, quer acreditemos ou não – pouco tempo se passa.
Particularmente, o que se desenha dentro da seara biografia me incomoda mais do que as questões básicas do filme espírita. ‘Predestinado’ não tenta doutrinar o espectador, e encontra espaço para a autocrítica do biografado, que sabe que, independente de ter sido um grande homem, não foi nem grande pai nem grande marido. Suas funções dentro da teoria espírita são defendidas com qualidade pelo filme; já as funções do roteiro que atrelam a produção à fatia biográfica, serão sempre um ponto de incômodo. Concentrado basicamente nos 20 anos em que atuou como ‘cavalo’ de um espírito, e disposto apenas a prestar caridade, ainda assim são muitos anos para cumprir de narrativa, o que obviamente abre espaço para as lacunas que biografias sempre cairão.
O que impressiona na realização é o cuidado que Fernandez carregou na mudança de mídia. Se não pode controlar o cuidado com o material narrativo, no estético ele pode mostrar serviço, e mostra. Com ajuda do octogenário fotógrafo Uli Burtin (de ‘Hans Staden’ e ‘Meu Nome não é Johnny’), o diretor cria um material que não é apenas veículo para defender as doutrinas que a religião prega, mas sim tenta contar sua história através dos planos, se apartando das palavras para criar imagem. É aí que ‘Predestinado’ cresce, porque tem um diretor obstinado com o fotograma que entende que precisa prescindir ao processo tradicional narrativo.
Como é uma biografia, a estrutura é ancorada justamente nesse esquema discursivo. Para isso então, Fernandez convocou uma outra tropa de elite – o elenco. De escalações certeiras como Marcos Caruso, Carlos Meceni e Ravel Cabral em participações especiais muito efetivas, o longa está nas costas do casal vivido por Danton Mello e Juliana Paes. A segunda mais uma vez confere dignidade e impressionante conexão com a humanidade de sua personagem, já o caso de Mello é mais delicado. Visto por muita gente como o ‘irmão de Selton”, Danton há muito prova seu valor, mas há muito tempo não ganhava um protagonista pra chamar de seu.
Mello, então, aproveita para criar identidade com quem ainda não tem, e agradecer a quem já o tinha em alta conta com um desempenho marcante. ‘Predestinado’ mostra sua principal diferença de seu irmão: Danton é um ator muito mais físico e emocional que Selton, e está em cena de maneira muito despudorada. Seu Arigó não tem medo de parecer frágil e relutante, enquanto sua personificação mediúnica exemplifica um ator mais interiorizado e intenso. No conjunto, é um papel repleto de armadilhas, do qual Danton sai com uma reafirmação dos anos de trabalho em uma entrega que nunca deixa de emocionar.
No saldo final, ‘Predestinado’ é um exemplar acima da média pra vertente que for de onde olhemos, e que marca o que esperamos ser o início da descoberta de um novo diretor de cinema. Partindo com fôlego rumo a um mercado incerto, Fernandez deixa uma impressão positiva de sua estreia, que conseguimos destacar em detrimento das limitações do lugar onde seu filme é inserido.