Existe algo de mágico quando você se atém a uma obra sem saber previamente muitos detalhes sobre ela. Foi assim que assisti a The Plot Against America: sem ter lido o livro, sem ter visto o trailer. E foram vários os momentos em que eu me peguei segurando a respiração, me perguntando o que ali era real ou não. Momentos como “pera, Charles Lindbergh foi presidente dos EUA!?” ou “em que momento Roosevelt retoma o poder e os EUA entram na WWII?” ou mesmo “como essas pessoas não enxergam que estão dentro da panela com a água fervendo?!?!”. Sim, tudo é perfeitamente crível.
Só ao fim dos 6 episódios da minissérie eu fui tentar anotar a placa do caminhão que tinha me atropelado. E descobri que estava diante da minha quarta distopia apenas no ano de 2020. Diferente de O Homem do Castelo Alto, O Conto da Aia e Watchmen, em The Plot Against America tudo é muito mais simples. O que aconteceria se a presidência da república fosse entregue (democraticamente, é claro) a uma celebridade fanfarrona e demagoga cuja campanha remetesse ao slogan “América em Primeiro Lugar” (“America First”)? Uma figura falastrona que namora com o autoritarismo e o despotismo mas sempre repetindo a torto e a direito que é preciso “tomar o país de volta”?
Um Presidente-Celebridade
Pois é exatamente isso que acontece no romance homônimo de Philip Roth, publicado em 2004 muito antes que qualquer paralelo com a contemporaneidade pudesse ser traçado. Trata-se de uma linha do tempo alternativa que se iniciou com algo muito simples: a eleição de Charles Lindbergh – um aviador isolacionista e anti-semita – para presidente dos EUA. Na sua adaptação para a TV, “The Plot” chega cheia de detalhes que, do roteiro ao elenco, impressionam pela verossimilhança com a atual realidade. Além dessa atmosfera envolvente, o fato de que percebemos a transformação da sociedade pelos olhos de duas crianças é ainda mais impactante.
Desculpe-me por parecer repetitiva, mas a metáfora do sapo em água fervente não me sai da cabeça há tempos e, para mim, é a que melhor resume sobre o que a obra é. Em meados de 1940, Lindbergh – primeiro aviador a cruzar o Atlântico – se apresenta como uma solução nacionalista, isolacionista e contra intervencionista, que abomina qualquer aproximação dos EUA com a guerra “dos europeus” contra Hitler. Entre uma frase de efeito aqui, uma fala questionável ali, um tanto de xenofobia e preconceito acolá, ele tem outro notório anti-semita como braço forte – Henry Ford – e semeia com sucesso o fascismo em seu terreno mais fértil: a desunião, o artifício mais conhecido dos autoritários. O espectador é, assim, envolvido pela banalização do pensamento fascista na trama, assistindo incrédulo, a aceitação de tudo isso pela sociedade. Afinal, o que tem de errado em dar um jantar em honra ao ministro nazista das relações exteriores?
Um grupo tem papel fundamental nesse movimento: os “acomodacionistas”. Aqueles que se creem os únicos realistas num contexto onde os demais – todos extremistas – estão cegos por sua própria retórica. Acreditam, tal qual a elite alemã que elegeu Hitler, que a parcela absurda do discurso do eleito não tem aderência prática. Não querem se preocupar com isso já que, para eles, não existe discurso de ódio. Na trama, um rabino se presta a tal papel e, num perigoso misto de credulidade e ambição pessoal, se recusa a perceber que está sendo usado como um reles fantoche. Neste ponto, o preconceito está validado pelas lideranças políticas e as minorias percebem que o direito de igualdade por ser revogado a qualquer momento.
“Esses idiotas, eles sempre estiveram aqui e agora eles têm permissão para sair dos esgotos”
Toda a narrativa se passa pela perspectiva de uma família judia nos subúrbios de Newark. Vemos essa família se partir por conta das ideologias políticas: os que percebem o perigo, os condescendentes e os radicais. Testemunhamos a pluralidade das ideias ser desprezada na frente da icônica estátua de Abraham Lincoln. Assistimos, quase que em tempo real, o impacto da torrente de intolerância em cada simples ação do cotidiano. É desesperador!
Fazer tudo isso funcionar demandou uma exímia habilidade por parte de todos, dos showrunners ao elenco. Criada e escrita por David Simon e Ed Burns (ambos de The Wire), “The Plot” conta com Morgan Spector (Homeland, Boardwalk Empire), Zoe Kazan (The Deuce), David Krumholtz (The Deuce, The Good Wife) além dos excelentes Winona Ryder e John Turturro em uma química sensacional entre si. As crianças, Philip (uma espécie de alter-ego de Roth) e Sandy (Azhy Robertson e Caleb Malis, respectivamente), são um espetáculo à parte e cumprem com honras a responsabilidade de nos emprestar suas perspectivas por mais de uma vez.
“Goste ou não, Lindbergh está nos mostrando o que significa ser judeu. Apenas pensávamos que éramos americanos”
The Plot Against America em sua primeira (e até agora única temporada) é uma trama simples sem deixar de ser complexa. Apresenta personagens igualmente complexos e cativantes que não tem dificuldade de conquistar nossa empatia. Também reflete um esforço coletivo para fazer com que tudo fosse plausível e todos os arcos dramáticos fossem concluídos (à despeito de ser uma distopia e, assim, deixar o final “em aberto”). Em algum momento poderíamos pensar que muitas situações roteirizadas ali estão no limiar da razoabilidade, mas hoje entendemos que infelizmente não estão. Definitivamente impressiona a ponto de ficar na nossa mente por muito tempo. Um espetáculo!