A HBO acerta e entrega mais uma obra-prima neste ano. Não bastasse a excelente minissérie Chernobyl, a rede de televisão HBO se junta ao diretor e roteirista britânico Russel T. Davies a fim de criar umas das minisséries mais alarmantes e fascinantes dos dias atuais. É o caos de uma distopia que assusta gradativamente ao passar de cada um de seus 6 episódios.
É possível sentir uma pegada que mistura o filme “Filhos da Esperança”, do aclamado diretor Alfonso Cuarón, com alguns dos melhores episódios do seriado britânico “Black Mirror”.
O show acompanha alguns anos de uma família inglesa comum que mora em Manchester, na Inglaterra: os Lyons. O ano do piloto é 2019. Um primeiro episódio incrível. Mostra exatamente tudo o que acontece no planeta neste nosso ano. Trump está lá, Merkel doente, o Brexit, Le Pen e sua França, crises com refugiados: tudo como temos hoje.
Davies entrelaça imagens atuais e de manifestações ao redor do mundo com sua criação. Essa construção flui de maneira excelente até chegarmos ao colapso caótico do último momento desta primeira parte. A obra avança 5 anos: um conflito bélico mundial é mais que iminente.
A angústia criada pela distopia conta com um poder extremamente aguçado pela trilha sonora do passar dos anos: um som confuso e caótico representa a contagem de tempo. Este som também marca os eventos que tomam terreno ao redor do globo. Davies imprime a decisão de acompanhar não apenas os Lyons, mas a nós ‘público’ também. O interessante em distopias é que os criadores podem manipular aquilo que o futuro pode nos trazer. Muitas vezes numa realidade extremamente perturbadora. Perturbadora é a cara do show.
Os Lyons são guiados pela avó moderna Muriel, a matriarca da família. Ótima interpretação de Anne Reid. Seus netos seguem a avó de perto numa formidável afinidade maternal. Com a introdução de cada um dos personagens centrais, Russel T. Davies nos encaixa perfeitamente naquele contexto familiar. Cada qual com sua intensa e curiosa história.
Os atores Rory Kinnear, Ruth Madeley, Jessica Hynes e Russell Tovey dão vida aos quatro netos de Muriel. Todos estão talvez em suas melhores performances. Kinnear faz o corretor fracassado num casamento feliz, Madeley é a cadeirante solteirona com 2 filhos de pais diferentes, Hynes tem o arco maravilhoso de justiceira e ativista (quase uma espiã) e, por fim, Tovey interpreta um homossexual da Câmara britânica que trabalha com refugiados e se apaixona profundamente por um.
Além deles, destaque para a personagem de um dos pontos altos da trama: a atriz Emma Thompson. Ela traz à cena a líder do Partido Quatro Estrelas, Viv Rook, que funciona como uma espécie da pior versão de um político de extrema direita. Há tempos não via Thompson tão esplêndida e assombrosa. Suas decisões dão aquela ideia de que o pior sempre está logo ali.
A relação chocante de Viv Rook com os refugiados ucranianos – entre outros – lembra um passado nem tão longínquo e um certo líder repugnante popular de outrora.
Um futuro que aterroriza
A minissérie expõe alguns possíveis avanços imensos da humanidade em diversos campos. Mas o melhor e mais sombrio deles está centrado naquilo que a bisneta de Muriel – Bethany Lyons – almeja. A entrega excelente da atriz Lydia West buscando ser uma trans-humana nos intriga ao melhor jeito Black Mirror de ser. Até a estética atribuída à questão tem uma boa similaridade. A vontade dela é de se tornar dados, ter sua consciência eternizada na grande rede após sua morte.
A montagem do genial Russel T. Davies é fascinante. Ele alterna Sci-fi com política numa soberania invejável. Davies já escreveu roteiros para shows da BBC. Programas jornalísticos também. Domina a escrita e o ritmo. Sofremos e sentimos tudo de “Years and Years” como se fora conosco a cada passo destruidor que o planeta dá.
“Years and Years” cumpre seu papel bem definido já em seu primeiro episódio: chocar. O drama visto, por exemplo, no quarto episódio nos toca de uma maneira tristemente profunda. Aquilo é real. Aquilo acontece. O elenco inteiro está em harmonia. Todos estão no mesmo nível. Não há espaço aqui para qualquer fraquejada de roteiro ou atuação.
O monólogo da atriz Anne Reid encerra bem a obra e nos faz pensar em diversos níveis. Ela é invasiva. A matriarca vovó Muriel fala na nossa face, meio que rompendo a quarta parede: a culpa é nossa – o povo – em relação ao que aconteceu com o planeta. Como ela mesma grifa: “os bancos, o governo, a recessão, os EUA… tudo que deu errado é culpa de vocês”. Vi o discurso visceral dela três vezes já. Vejo de novo.
Onde ver: HBO, HBO GO