"Annette" (2021), de Leos Carax
9.5Pontuação geral
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9.7

Onde: Mubi e Prime

O diretor francês, Leos Carax, retorna às telonas com uma das obras mais ácidas, poéticas e polêmicas do cinema em 2021. Um musical agudo e profundo que invade a vida íntima de um casal de estrelas de Hollywood (Ann e Henry) não apenas nos bastidores, mas em diversas camadas do seu lar privado. Vivem do glamour dos palcos, mas se inebriam do brilho falso e efêmero que a imprensa – que os ergue – lhes determina. Imprensa também que os destruiria. Mas não sozinha.

Carax soube bem, de maneira assertiva e assustadora, pontuar e filmar a tal famosa “vida de cinema”, mas também de tabloide. Por momentos, revivi a saga cega de Riggan Thomson (personagem de Michael Keaton no maravilhoso Birdman, 2015) tentando sucesso por meio dos olhos da imprensa marrom crítica da vida severa da Broadway. O diretor teve seus traumas pessoais e por vezes parece realizar uma intertextualidade entre sua vida e sua obra. Carax perdeu sua esposa em 2011. Decorrência de depressão. A filha do ator chega a participar do princípio do filme, sentando-se ao nosso lado (público) para apreciar o abrir das cortinas.

Aqui, a quebra da quarta parede é maldosa. Começamos a nos incomodar com a direção que Carax vai dando à sua dupla. E nos perturba testemunhar aquilo. Primeiramente seguimos o casal famoso Anne e Henry – numa combinação química formidável envolvendo Marion Cotillard e Adam Driver. Um deprimido comediante de palcos e uma cantora de ópera. Sabemos tudo sobre sua vida estranhamente perfeita. Os close-ups e as panorâmicas em câmera lenta logo davam o tom propagandístico do casal de capa de revista. Porém, ao nascer sua filha Annette, a dupla tem seu mote alterado severamente na película. Para sempre. Há a reflexão do pesado argumento de que existem pessoas que não nasceram para ser pais, ou mesmo formarem um casal.

O ponto alto da peça: o artificial

Eis que nosso testemunhar nos aniquila. Carax muda o rumo da obra a fim de dissertar sobre um sexismo nefasto e avassalador. É a retórica do francês. E passamos a observar um relacionamento eivado de maus tratos. E já vínhamos tendo indícios dessa maldade num segundo ato demorado e que exibia a relação – agora – artificial. Temos um péssimo marido, um artista num horrível momento e um pai nada zeloso. A crise nos palcos, também diante da mídia, corrompe qualquer moral que Henry poderia ter um dia tido perante sua família e seu público. A câmera do diretor não tolera o mau Henry.

O ponto alto das escolhas de Leos Carax foi toda a alegoria voltada para a representação do artificialismo que envolvia Ann e Henry. A começar pela introdução quadro a quadro do que se passava com o casal. Todo momento era aqui iniciado como se lêssemos uma manchete de revista. E a filha deles é representada por uma boneca: o ápice da simulação e do afastamento do espectador. Annette é uma marionete. Assim como a relação de seus pais: outra marionete. E ela tem o dom de sua mãe: a mesma eloquente voz onírica de ópera. Voz que perseguirá Henry o filme inteiro: assombroso.

As músicas sombrias aqui são narrativas que revelam o que viria a acontecer no filme, como se fossem apenas o texto cantado. Como uma ópera mesmo. E é assim que Henry revela um absurdo no filme e faz o espectador estourar os olhos tamanha força da cena. Todo o processo de semiótica aqui emula de fato o grotesco de nosso mundo e também os perversos eventos envolvendo Henry.

Realmente não havia espaço para a duração escolhida. Talvez 30 minutos a menos deixariam o filme mais fluido e simplificariam narrativas que, se fossem realmente bem amarradas (não entreguistas), não afastariam o espectador do terço final da obra. Nesta parte, o diretor nos fisga de volta ao filme ao relacionar Ann e Henry, mas agora de forma penitente e repreensiva por meio de sua filha. Neste final, destaque para diálogos surreais entre o casal e alguns monólogos bem corporais na voz pesada e áspera de Adam Driver.

Dadas as consequências dos atos de Henry, somadas à fotografia que escurecia a paleta e o tom “operístico” de Carax, temos o diretor numa exposição moral à qual ele mesmo quis chegar. Como se fosse perseguido por tal voz em seu íntimo, ao passo que Henry também o é. Corajoso Leos Carax e ambicioso ao deixar suas “cores verdadeiras” à mostra. A reflexão sobre as relações fúteis e artificiais é urgente. Impossível ignorar o iminente alarme sobre vida moderna destes casais agitados de mídias sociais e de fama feroz, que são de fato uma marionete, mas mais nociva do que lúdica. Mais falsa, que o mínimo brilho do real.