Avaliação Hybrido
8.5Nota do Autor
Votação do leitor 2 Votos
8.9

Onde: Cinemas

 

Ter assistido ‘Crimes of the Future’, novo longa dirigido pelo mestre David Cronenberg, no exato anterior a rever ‘Gêmeos: Mórbida Semelhança’, um dos clássicos do diretor, me colocou no lugar onde provavelmente ele queria colocar o espectador. Em contato direto com um dos autores mais regulares dos últimos cinquenta anos, absolutamente coerente com sua filmografia, comunicando-se à perfeição com seu legado. É o autor olhando admirado sua filmografia, pela construção estético-narrativa que o marcou, e que aqui compreende ao máximo seu lugar na História. A partir de então, recondicionar seus signos para conceber um autorretrato de rara compreensão.

Seu ator fetiche há mais de 15 anos, Viggo Mortensen é uma representação acurada dele mesmo. É, a um só tempo, artista e obra; é Cronenberg tendo a consciência de que sua representação gráfica, hoje, é a conexão com sua filmografia, gerando um animal raro que se enxerga no que realiza. Seu corpo está à serviço da arte, e a arte é ele mesmo – não há como dissociar quem é David Cronenberg (e a maioria dos artesãos) do que ele criou. Com isso, nada mais natural do que unir em uma mesma criatura a persona e o material gráfico, como algo único e orgânico.

Sai das entranhas de Mortensen a arte, é Cronenberg perseguindo em sua obra o possível para continuar, das profundezas. Ele também está falando de um tempo onde a anestesia emocional seguiu o corpo. Não há mais sensação de dor, ela foi extirpada da humanidade, que agora busca novas formas de envolvimento sensorial. Ele, Cronenberg, descobriu então uma forma de prazer, aquela que privilegia os sentidos. Se não há dor, que ao menos haja sensações auto-provocadas. Da união dessas ideias, entre a anestesia completa e a busca pela reinvenção do corpo, nasce esse ‘Crimes of the Future’, resposta para sua filosofia e para uma sociedade inerte.

O espaço que Kristen Stewart ocupa nesse mosaico é, provavelmente, o nosso. Ela admira O Artista, e de maneira obsessiva se infiltra em sua vida. O que nasce entre os personagens enquanto arquétipos é um olhar de curiosidade, seguido de devoção, e acaba por colocar em xeque nossa própria relação com a obra sob a qual nos debruçamos. Se Léa Seydoux é a ponte entre A Arte e A Execução da Arte, a Stewart cabe embevecer-se de seus signos, mesmo que não saiba exatamente como alojá-los. ‘Eu não sei mais fazer o sexo convencional’, ela ouve.

Uma investigação policial adentra esse universo aparentemente de maneira despropositada, mas o personagem de Welket Bungué também está no lugar do fascínio, embora ele sim saiba centralizar suas ações. Essa trama, ao contrário do que é imaginado, entrega ao filme um senso de moralidade que está em desuso, e que não precisa ser retomado, dentro daquela lógica; isso não quer dizer que não exista uma sombra tentando trazer a narrativa para a luz. Ao filme não interessa o retrocesso de correr atrás de conceitos de justiça ditos antiquados, ele está em outra leitura de aproveitamento de corpos.

O próprio Viggo Mortensen dá o tom, com a corporalidade inusitada, mas exatamente na proposta acertada em se tratando não apenas de um longa de Cronenberg, mas de uma representação gráfica sua. Quando caminha pelas ruas como um zumbi, ou quando se posiciona em sua câmara cirúrgica, disposto a experimentar novas formas de prazer, o ator parece à vontade em sua versão catártica de um artista que recria em suas vísceras a polpa de uma arte moderna, porém absolutamente condizente com o que ele representa.

O resultado de toda essa experimentação estética e narrativa é irregular, mas nem dava pra imaginar outro resultado mesmo. ‘Crimes of the Future’ é ambicioso em tentar encapsular uma proposta de leitura particular de uma obra vasta, mas coerente. Com diálogos que remetem diretamente a produções como ‘Gêmeos: Mórbida Semelhança’, ‘Crash’ e tantos outros, Cronenberg realiza uma autoanálise muito mais acertada que outros cineastas recentes, em especial Lars Von Trier. Não há intenção nele em uma referenciação vazia em torno do próprio umbigo, mas de uma assimilação de seus signos e discurso em uma nova obra, inédita.