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Onde: Amazon Prime

ONE LAST KISS

É difícil falar sobre Eva, prefiro deixar o prefácio para seu autor Hideaki Anno: “Tokyo-3: Um mundo onde quinze anos atrás, mais da metade da população mundial foi dizimada. Um mundo reerguido, sua produção, consumo e economia restabelecidos. Um mundo com pessoas acostumadas à reconstrução que convivem com o sentimento de que o fim se aproxima. Este é o cenário em que se passa Neon Genesis Evangelion, um mundo saturado de visões pessimistas, ali temos um garoto de quatorze anos com medo de ter contato com outras pessoas, ele considera esse contato inútil e abandonou qualquer esforço para que os outros o compreendam e tenta viver em um mundo isolado. No fundo, ele tem um terrível medo de se machucar e é inadequado como personagem principal por não ter as qualidades de um herói. Por isso eu o escolhi como o meu personagem principal. Cada pessoa procura durante sua vida um sentido, meu objetivo principal é que ao final dessa estória, essas personagens tenham achado algo parecido”.

Nosso planeta realmente estava à beira do terceiro impacto para Hideaki Anno decidir nos entregar: O FIM de EVANGELION. Sim, o fim. A série de anime lançada em outubro de 1995 é uma das mais, talvez a mais, influentes e importantes séries de animação japonesa, com fãs pelo mundo inteiro que não se cansam de analisar cada frame, pausa e respiração na obra máxima de Anno, como a famigerada cena do elevador, em todas as suas três versões.

Presente em todas as listas, geralmente nas primeiras posições, usando terror psicológico e traumas familiares como cola em um enredo de ação, repleto de batalhas de robôs gigantes (Mechas), organizações secretas e referências cabalísticas, o impacto causado pela série é inegável e com uma simples pesquisa no google é possível encontrar milhares de teorias e dissertações sobre simbolismos como a relação do “Dilema do porco espinho” de Schopenhauer, em que o animal tenta se aproximar do outro com objetivo de se aquecer, mas por fim, sua ‘autodefesas; espinhos; CAMPO AT’ acabava por distanciá-los.

Como cada uma das três personagens principais representa partes da personalidade de Anno, sendo baka-Shinji, sua inabilidade em lidar com responsabilidade e conflito, Asuka, sua agressividade e urgência em se provar como um artista especial e a boneca Rei, sua curiosidade quase infantil sobre o mundo desconhecido ao seu redor.

Como a produção turbulenta e a depressão de Anno influenciaram diretamente em ambos os finais apresentados até o momento, o ‘um pouco mais otimista: saia de casa nerd, existe um mundo lá fora’ da série e o ‘eu odeio todos vocês que me mandaram ameaças de morte’, também conhecido como ‘The End of Evangelion’.

Poderíamos escolher aqui inúmeros pontos ou tópicos e um texto apenas não seria suficiente para arranhar a superfície, então decidi falar sobre a minha relação com Evangelion, que começou aos meus quatorze anos, lendo o texto que vocês leram acima. Grandes personagens nos fazem identificar com eles em suas jornadas, mas Shinji não é assim, ninguém quer se identificar com Shinji Ikari; ele é fraco, covarde e quando confrontado ou necessário, geralmente foge, literal ou metaforicamente, colocando seus fones de ouvido.

Abandonado pelo pai após a morte da mãe, ele cresceu solitário e quando requisitado pelo mesmo pai para pilotar um híbrido entre mecha e organismo vivo gigante, chamado Evangelion, para enfrentar um alien, também gigante, chamado de Anjo, querendo causar o terceiro impacto, ou o fim da humanidade, ele se nega e chora, não se importando em salvar um mundo que só o machucou. Apesar de eventualmente pilotar o evangelion para enfrentar os anjos, ao longo da série essa é sempre uma questão difícil para o personagem que não, raras vezes, se abstém de tomar uma decisão, ou foge, o que geralmente leva a situações ainda piores.

Mantenho o que disse aqui, ninguém quer se identificar com Shinji Ikari, mas em algum momento da sua vida, seja na adolescência ou em algum momento especialmente difícil, você foi ele, ou pelo menos quis poder sê-lo. Crescer é difícil, mudar é difícil. Deitar em seu quarto escuro com fones de ouvido tocando Bach, enquanto o mundo acaba lá fora, literalmente no caso da série, é reconfortante.

A série Rebuild of Evangelion, nasceu da vontade de Anno em finalmente contar a história que queria, sem as limitações orçamentárias da série original ou a raiva depressiva que o fez produzir ‘The End’. Os dois primeiros filmes (2007, 2009) se atêm a contar a trama original, com algumas pequenas alterações bem-vindas, a introdução de uma nova competidora/personagem – Mari – na mais antiga ‘guerra-waifu’ da história e em seu clímax, o terceiro impacto.

O MUNDO APÓS O TERCEIRO IMPACTO

Então veio o terceiro filme (2012) nos apresentando um mundo depois do terceiro impacto, algo visualmente impressionante, mechas em sequências de ação que ainda assombram os pesadelos de Del Toro e uma história original que se desvia bastante da série, em que a Nerv e Gendou Ikari (pai de Shinji) têm um papel mais definido como antagonistas. Misato se tornou uma Sarah Connor no comando da resistência e Asuka continua ‘best girl’, mas agora com tapa-olho e abertamente mais agressiva com Shinji, por suas escolhas.

Então veio 2014, 2015, 2016, a administração Obama acabou, Trump assumiu, 2017, 2018, Bolsonaro, 2019, Coronavírus, 2020, lockdown e eu juro, já nesse ponto, eu estava tranquilo em nunca assistir ao seu final. Não porque o mundo parecia perto do terceiro impacto, mas porque eu tinha feito paz com Evangelion. Seria sempre aquela história que me guiou durante meus anos no colegial, que vez por outra gostava de revisitar e rever minhas cenas favoritas.

E então no ano de 2021, Anno (trocadilho não intencional) decidiu entregar “Rebuild of Evangelion: 3.0 + 1.0 Thrice Upon a Time” e admito que fiquei um pouco cético a princípio, mas após alguns meses, o filme foi realmente lançado nos cinemas japoneses, muitos assistiram e eu não. Eu já tinha me mudado, muito tempo havia se passado, o mundo não era mais o mesmo, minhas prioridades também não. Foi em uma noite fria, em que o vento uivava lá fora, quando decidi “reassistir” aos três primeiros filmes para encarar o quarto. E então imediatamente fui transportado para aquele garoto de quatorze anos que sonhava com a Asuka, gostaria de ser como o Kaji e acabaria por fim, se tornando a Misato.

É claro o amadurecimento de Anno neste filme, não só como artista, mas como ser humano. E dividimos com ele, durante esses longos 25 anos, sua jornada pessoal expressa pelas emoções de sua obra e o sentimento final é de paz. Uma aceitação de que existe sofrimento e dor nas mudanças e decisões que temos que tomar, mas que elas também podem levar a um mundo melhor, e que nem toda dor é infinita, que não existe mágoa que não possa ser curada e existe uma alvorada após a escuridão.

O filme de Anno começa com uma ‘porradaria em alto estilo’, em Paris, em que o Evangelion de Mari usa a torre Eiffel como arma para depois mudar seu foco no desenvolvimento do trio principal, em que Shinji e Asuka recaem sobre seus velhos hábitos, enquanto Rei tem um bonito desenvolvimento. O carinho do diretor pela personagem é palpável, tornando-a catalisadora da definitiva mudança em Shinji e Asuka, que finalmente conversam abertamente sobre seus sentimentos. Colocando um ponto final na mais antiga batalha entre os fãs de Evangelion.

O clímax da obra, o confronto final entre Shinji e Gendou, nunca fora retratado da maneira tão bela, jogando uma luz nas motivações de um dos personagens mais detestados do mundo dos animes. É o final que muitos esperavam? Não. É, no entanto, um final maduro, como nas palavras imortais do Comissário Gordon: ‘o que precisamos’, trazendo uma sensação de aceitação e funcionando quase como um epílogo, uma conclusão de um capítulo da sua vida. Como diz a música de encerramento, ‘Embora você tenha me dado tanto. Por favor, me dê mais uma coisa. Você pode me dar um último beijo? É algo que eu não quero esquecer.’ Hideaki Anno amadureceu e se tornou adulto, e quem diria, eu também.