É sempre bom acompanhar o cinema independente brasileiro, e o quanto existe talento e disposição mesmo sem muito apoio nas produções. “Propriedade” é um bom produto para ilustrar isso, e como o cinema pernambucano se destaca nesse período sem luz nos incentivos culturais nacionais, além é claro de ser um grande celeiro recente de talentos pro cinema, de cabeça Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirinas e Urubus”), Lirio Ferreira (“Baile Perfumado”), Cláudio Assis (“Amarelo Manga”) e Kleber Mendonça Filho (“Bacurau”, junto com Juliano Dornelles), hoje o mais popularizado.
Daniel Bandeira em seu segundo filme aqui (o primeiro, “Amigos de Risco”, lançado em curta distribuição este ano) nos traz importantes questões de um país que a maioria teme em esquecer, mas que segue vivíssimo principalmente em períodos eleitorais como os que vivemos agora, um Brasil ainda carregado de práticas e vícios que remetem ao período escravagista, representado em Pernambuco pelas casas de engenho.
A propriedade que dá nome a este filme é esteticamente uma casa de engenho, e tudo insinuado e recortado na primeira parte do filme descreve o quão ainda existe este tipo de prática. E aí podemos entrar na protagonista do filme, interpretada por Malu Galli, que carrega consigo a problemática central da obra, sobre o quão devastador o efeito da violência pode ser em escala comunitária, através do trauma sofrido por um incidente que aparece na tela antes dos créditos iniciais.
O filme conecta essa viralidade da violência em grande parte à incomunicabilidade social existente no país, e o quanto isso é antigo, duradouro mas já insustentável. A precariedade de trabalho naquela propriedade associada à notícia de demissão coletiva mais despejo desencadeia eventos a princípio por reações impulsivas daquelas pessoas, vai avançando até a legitimidade induzida na solução daqueles problemas, às raias de uma visceralidade animalesca e raivosa.
O cofre da casa e o carro blindado dialogam como a barreira quase intransponível entre a realidade e a dignidade daqueles trabalhadores com o poder da classe dominante em ajustar a desigualdade e sua capacidade de diálogo com essa classe trabalhadora. A própria protagonista, traumatizada e sem ter o lastro direto da família de seu marido na realidade de vida daqueles trabalhadores na casa, é o termômetro da arbitragem social instituída ali, através da violência muito bem posicionada com uma estética de visceralidade que compõe o drama de classes ali.
O talento da produção e a condução de Bandeira dentro dessa encenação brutal e sem concessões, num exercício de gênero primoroso, faz de “Propriedade” uma obra difícil de digerir mas de fácil compreensão do mundo que nos cerca no Brasil, e o quanto isso é de contextos sociais não conduzidos e muito mal conduzidos ainda hoje. Através da violência, denuncia o quanto esta mediação nunca funcionou e que não basta apenas enterrar os problemas, é necessário confrontá-los.