Onde: Cinemas
“Marte Um” fez sua estreia nacional em agosto de 2022, após grande destaque nos Festivais de Sundance e Gramado. Chegou às telas de cinema já premiado e querido pela crítica. Permanece em cartaz, com desempenho surpreendente e hoje foi anunciado pela Academia Brasileira de Cinema como o filme que representará o Brasil no Oscar 2023.
Diante de todos os – merecidos – holofotes, talvez o que eu escreva aqui apenas sublinhe o que já foi dito a respeito do filme, mas penso que não poderia ser muito diferente, já que o filme de Gabriel Martins consegue um feito notável – a identificação, tanto do público, quanto da crítica – com a obra.
O longa conta a história de uma família da periferia da cidade de Contagem, Minas Gerais, composta por Tércia (Rejane Faria), que é diarista; Wellington (Carlos Francisco) porteiro; Eunice (Camilla Damião), estudante de direito e Deivid – apelidado de Deivinho (Cícero Lucas), adolescente que aspira ser astrofísico, apesar do desejo de seu pai para que seja jogador de futebol. O ano da história é 2018, recém-eleição de Bolsonaro – época de grande instabilidade política e social.
A partir de uma premissa aparentemente simples, o filme se descama em incertezas, sonhos e debates profundos. Começando pela família, formada por quatro indivíduos que lutam por seus sonhos em um ambiente hostil, num país extremamente polarizado politicamente, sob a égide de um governo que prega o ódio e preconceito contra suas essências: negros, pobres, periféricos e homossexuais.
A questão que surge deste fato é a relação entre sonho/realidade. O quanto se é possível sonhar e efetivamente realizar quando se vive em um ambiente contrário à sua existência. Diante dessa problemática, cada personagem resiste à sua maneira. O pai, Wellington, projeta no filho seu próprio sonho, a possibilidade de uma vida que ele jamais teria condições de ter, ainda que esta não seja a vontade do adolescente. Deivinho, por sua vez, luta por sua existência individual ao descartar a possibilidade de sonho do seu pai para perseguir o seu próprio – de se tornar astrofísico e participar de uma missão em Marte.
Enquanto as personagens masculinas apresentam o lado mais lúdico, o feminino se contrapõe ao apresentar personagens ativas, que apesar dos sonhos, exercem a força motora em direção à concretude. A filha, Nice, é a personagem que enfrenta as restrições – diante de todas as dificuldades, está se graduando em direito em uma universidade; ainda que receosa, se assume homossexual perante a família e por fim, é a personagem que consegue transcender a bolha do núcleo familiar, o que a torna justamente o núcleo de força dessa família, até mesmo por seu olhar externo.
A matriarca, Tércia, passa por uma situação traumática e tem de lidar com as consequências diariamente e ainda assim manter sua rotina, diante da impossibilidade de parar de produzir. Tem que trabalhar para ajudar em casa, cuidar dos filhos e marido. A narrativa de Tércia é a que mais oscila entre o drama e a comédia. Neste ponto, entram algumas pseudo-narrativas que não se desenvolvem o suficiente – como é o caso de Tokinho – mas que também não chegam a prejudicar o andamento do filme – tendo como mérito deste feito a atuação segura e muito bem construída da atriz Rejane Faria.
Quanto à direção, Gabriel Martins continua explorando sua sensibilidade e talento em extrair resultados complexos e de extrema qualidade a partir de simples premissas, através de sua edição, montagem e o uso da câmera como partícipe da história contada. As personagens são filmadas de forma intimista, sensível, o que nos faz rapidamente embarcar nos sonhos e aspirações de cada uma delas.
Marte Um, ao mesmo tempo em que apresenta um recorte da dura realidade política e social do nosso país, aquece o coração e nos enche de esperança, ao mostrar a força e importância da liberdade de sonhar. Um cinema nacional pulsante e acolhedor. Sem dúvida, um dos grandes filmes do ano.