“Propriedade” (2022), de Daniel Bandeira
9.5Pontuação geral
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8.1

Onde: cinemas, Festival do Rio

 

O Festival do Rio de cinema apresenta realmente um menu vasto ao longo de seus 10 dias, com obras já premiadas em outras competições que chegam aqui despontando, obras que já desejávamos ter visto, filmes inéditos que sabemos que serão laureados no início do ano que vem, além obviamente das excelentes produções nacionais que se misturam a estas citadas grandes produções de estúdios estrangeiros ainda galgando por patrocínio, espaço promocional e vida saudável fora do Festival. É o caso do longa pernambucano independente: “Proriedade”, de um voraz e contestador Daniel Bandeira. Além de dirigir, ele escreve também.

Bandeira consegue dominar com maestria conceitos de diretores de diversos gêneros. E aqui ele passeia por estes gêneros. Temos inclusive uma imersão boa quando chegamos firmes à pegada do terror. É possível observar aqui resoluções como as de Lewis Teague, Quentim Tarantino, Jordan Peele, sem contar a comunicação que há com textos variados de Stephen King. Indiscutivelmente, estamos diante de um cinema nacional de altíssimo nível. O diretor sabe como escalar gradativamente até o ponto em que o sufoco em sua pior definição é inevitável.

O ensaio de Bandeira é bem definido em seus três atos. Temos uma introdução que parece até explicar demais aspectos que as imagens já nos entregavam, por exemplo, com relação a aflições da mente e denúncias de injustiça social. A dramaturgia dele provoca discussão severa e profunda a seu público. A obra, feita com imenso e longo trabalho, foi finalizada em outubro de 2018. E aqui o diretor consegue entregar os dois últimos atos com uma explosão visceral de tristes verdades nacionais, de gritos de socorro, alarmes assertivos de uma polarização tóxica em que se boicota o diálogo e se chega às últimas consequências do discurso. Quando o discurso não mais existe: ele falece. Sequer é artificio de negociação trabalhista. Quanta riqueza de detalhes para as câmeras de Daniel Bandeira capturarem!

PROPRIEDADE DE QUEM E PARA QUÊ?

Aqui seguimos Teresa, uma mulher rica com um forte trauma emocional, que pretende passar um resiliente tempo na grande fazenda da família com seu marido, no interior de Pernambuco. Chegando lá, ambos avistam uma rebelião vinda de seus empregados na sala da casa principal (a Casa Grande – de fato bem esmiuçada). Até então, o argumento parecia ser de fácil resolução. Alguns não mais trabalhariam naquele local. A fazenda já não era lucrativa como antes. Mas seria verdade isso?

Eles somente queriam seus dignos documentos assinados devidamente junto aos pagamentos proporcionais (de uma vida inteira de trabalho a fio para a propriedade). Porém um diálogo que rapidamente se inicia com uma espingarda de calibre 12 nas mãos do patrão não denota suavidade e equilíbrio. Tampouco busca a razoabilidade em suas ideias, mesmo que os empregados já estivessem agitados e impacientes. As palavras aqui já estão mortas.

Para chegar ao pontapé inicial dessa escalada de ódio e intolerância dentro da fazenda, o diretor Daniel Bandeira, incisivo e desafiador, já mostrava o marido de Teresa fazendo algo comum dentro das residências nacionais: a falta de compreensão com pessoas – como sua esposa – que possuem algum trauma psicológico. Ele considera a agonia dela uma coisa melindrosa, pedante e afetada. E é assim. Um mal como crises de pânico, no geral, não é visto como algo digno de um processo zeloso de cura, resiliência e afeto. A saúde mental agoniza em diversos lares.

Na fazenda, as reinvindicações mais básicas escancaram o desejo de um Brasil melhor. E expõem um Brasil que ainda mente a seus trabalhadores. E os faz de escravos. A falta dos direitos trabalhistas garantidos pelo artigo 7º da Constituição Federal lamentavelmente ainda é algo imperativo em alguns rincões desse país. Mas a euforia, a agitação e as falsas promessas naquele segundo ato vão se tornando bola de neve a cada frase, vão sendo carregadas de ódio e de falta de equilíbrio até que no estopim do levante, temos dois lados completamente opostos em que não há mais nenhuma chance de solução. E a mise-en-scène aqui não é maniqueísta (não se trata mais de bem x mal).

A morte do discurso devido à tanta incompreensão e trapaça inicia o criminoso terceiro ato. Totalmente niilista aqui. E Teresa? Em meio a seus problemas e ao que se instala na fazenda, ela corre até seu carro blindado para se proteger de alguma forma frente a seus coléricos funcionários. E eles? Precisam medir quais seriam “as vias de fato” a que estariam dispostos a chegar para apagar rastros e vestígios de muita maldade gráfica – sem medida – emplacada ali naquela ‘Propriedade”.


OBRA VISCERAL

Destaque para as cores quentes da fotografia soberana de Pedro Sotero. Aqui, as cores de “Propriedade” fazem com que todos os personagens queimem e pareçam exalar em seus poros uma luta de sobrevivência eterna. A trilha sonora já destoava da imagem naquele primeiro ato. Ela apavorava. Eis ali o alto grau de perigo vindouro num ato singelo e introdutório. De verdade, consegui me ver dentro de uma das obras do grego autoral e alegórico Yorgos Lanthimos, como “Dente Canino” (2009) ou mesmo “O sacrifício do cervo sagrado” (2017).

Cada gota de suor registrada por Daniel Bandeira evoca grandes atuações. Malu Galli está formidável aqui. Os trejeitos que ela traz ao personagem que precisa de cuidados, mas que logo se vê diante de outro conflito e precisa sobreviver é excepcional. Há quem saltasse da cadeira com seus olhos marcados por angústia e apreensão. Um visceral Samuel Santos põe em tela um sujeito que pode ser considerado vilão para alguns. Mas realmente há uma empatia por sua motivação. Sua voz tenra em busca de seu objetivo e o nosso conhecimento prévio de casos desumanos contra os negros pelas fazendas desse nosso interior, principalmente num Nordeste achincalhado por autoridades abomináveis, mostram que o trabalhador quer apenas usufruir daquilo que demandou sua exploração abjeta. Afinal, todos os personagens pretos ali levantaram aquilo que foi o lucro exorbitante do dono do local.

Uma obra que não é para qualquer gosto, mas é absurdamente necessária. Ela vai marcar o Festival. E, mesmo sendo difícil de se raciocinar ainda em seu final, ela certamente contribui para nosso olhar de reparo. É necessária uma maior atuação sim do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho para que tal pavor não povoe nossa classe operária. A fim de que nosso valorizado trabalhador prospere, o espectador deve gritar e denunciar ao perceber o menor indício de escravismo. Isso nunca sumiu. Ele se camufla. Erradicá-lo é doloroso e às vezes não há vontade para tanto. Triste.