Quem nunca resistiu a um hype da Netflix? Sempre faço isso, ainda mais relacionado a séries, que são legais mas não são a minha preferência no tempo livre ou como crítico. Principalmente porque poucas séries resistem aos critério do mercado e possuem início, meio e fim alinhados e equilibrados em torno de uma unidade ao longo das temporadas, muito talvez pelo formato de gerenciamento centralizado no showrunner, geralmente um roteirista.
Porém o formato ágil de episódios de 30min, boa repercussão no boca a boca, a cosmologia da trilogia original de “Karatê Kid” (uma das preferidas da minha infância) e a premissa inicial me aproximaram de ver a série “Cobra Kai” com certo atraso frente a maioria – e isso geralmente me permitem ter mais calma e atenção aos detalhes de composição e estilo na série.
Citei a premissa inicial como algo atrativo pois nos apresenta o então vilão do filme original Johnny Lawrence (William Zabvka) se ressignificando após defender um jovem latino de bullying num posto de gasolina, e a partir daí encontrar um propósito para sua vida como professor de karatê, arruinada desde aquela derrota no torneio regional de karatê para Daniel LaRusso (Ralph Macchio), hoje um bem-sucedido vendedor de automóveis na cidade.
A primeira temporada então explora esse lado invertido de um universo tão popular sobre heroísmo e virtudes através de Johnny e sua empreitada em levantar novamente a academia em que se formou como lutador quando era jovem – Cobra Kai – e como isso faz ressurgir em Daniel a necessidade de se reconectar a seu passado de lutador e com os ensinamentos de seu mestre Myagi, já falecido, através da casa de seu sensei, hoje um santuário de seu legado que é cuidado por Daniel.
Mas os jovens da série que dão o tom do verdadeiro arco dramático que move a série, quando coloca a vítima sob a asa do antigo vilão, e um bad boy (filho de Lawrence) sob a asa de Daniel, o antigo herói, e como as perspectivas de uma questão podem mover uma história completamente de um lado para o outro, e ser um excelente veículo de mensagens para a família enquanto espectadores.
Na segunda temporada se inclui um elemento também conhecido do filme original, e que começa a mover o tabuleiro para um outro conflito dramático, ainda mais denso, que é o surgimento do antigo sensei do Cobra Kay, Kreese (Martin Kove), tentando influenciar seu antigo aluno para os antigos e questionáveis valores daquele dojô – que são exatamente o rótulo ao qual Daniel resiste espontaneamente conforme o novo Cobra Kai vai crescendo, e com isso um problema maior surge – a propagação da violência no cotidiano dos jovens da cidade.
E nada mais atual do que abordar a bipolaridade ideológica como catalisador da violência, e conforme cresce a rivalidade entre o Cobra Kai e o Myagi-Do através da rivalidade passional de seus senseis na segunda temporada, mais o fantasma de Kreese se fortalece nos bastidores através das fraquezas adolescentes dos estudantes de lado a lado, que se transformam conforme planam pelos seus referenciais, e tudo transborda na épica batalha campal de volta ás aulas no desfecho da temporada, com consequências sérias para todo aquele universo.
E na terceira o arco dramático se divide entre a cicatrização dessa batalha em todos os envolvidos, as raízes do ódio que Kreese promove através do karatê no Cobra Kai, e como o principal motivador da infantil rivalidade sustentada entre Johnny e Daniel surge no desfecho da temporada como uma luz ideológica e racional para se organizar uma resistência ao verdadeiro mal que assola a geração jovem da cidade – a violência – através dos ensinamentos básicos do karatê e da maioria das artes marciais, a busca pelo equilíbrio entre o corpo e a mente.
Ao longo das três temporadas, a série sabe usar bem as cores branca e preta para representar esse duelo ideológico, e como pontualmente o vermelho é utilizado como uma espécie de sinal vermelho dramático sobre como tudo aquilo está passando dos limites de uma rivalidade esportiva para algo para além do esporte, com uma montagem associativa e didática em vários momentos, além de um crescente aprimoramento da fotografia nas lutas que, se não são tão bem coreografadas como as lutas de filmes hollywoodianos, não desaponta em termos de ação e tensão.
Em certos momentos, transparece que a série busca um pouco nos conflitos ideológicos misturados à genética (ou não) presente na franquia “Star Wars”, usando sinais da filosofia de cada lado da moeda representado pelos dojôs ao fundo em cenas potentes, ou na relação de tutor e aprendiz que víamos nos jedis e siths, e se o filme aprofunda apenas um lado dessa ideologia na relação entre Daniel e Myagi, na série se aprofunda mais o outro lado “vilão” desse universo, com as raízes que fizeram Kreese e Lawrence serem quem são ou quem querem deixar de ser.
Com maiores desafios dramáticos em convencer os velhos espectadores de sua complexidade dramática e na finalidade de se enxergar a idéia de outros contextos e a quebra da lógica vazia de heróis e vilões por si só, William Zabvka se torna a real revelação ao abraçar seu emblemático personagem e trazer humanidade naquele sujeito preso ao passado (talvez comum à carreira do próprio ator, analisando sua filmografia), com Ralph Macchio fiel ao seu principal personagem trazendo emoção principalmente nas cenas em que relembra sua relação com o seu mestre Myagi.
Já o elenco jovem cumpre os estereótipos de tramas que se passam nas high schools norte-americanas e nada mais, são apenas veículos de velhas questões do antigo filme oitentista que apaixonou a geração de pais que têm a oportunidade de ensinar e aprender bons valores aos filhos através dos eixos dramáticos da série, e que justifica a alta popularidade da série na Netflix.