Se você precisa de algo para assistir num só sprint, eis aqui sua resposta: Little Fires Everywhere. Uma minissérie extremamente objetiva, com oito episódios de 60 minutos todos disponíveis no Prime, facílima de assistir a despeito de alguns defeitos de execução e das inevitáveis comparações com Big Little Lies.
Emendando sua terceira série consecutiva como protagonista e showrunner (depois de Big Little Lies e The Morning Show), Reese Witherspoon deixou para trás o estigma “legalmente loira” e se firma como uma potência do entretenimento. Little Fires Everywhere (LFE) talvez seja justamente um esforço pessoal de criticar a cultura da perfeição que ela mesma personificou na comédia Legally Blond. Em LFE ela vive Elena Richardson, uma dona de casa típica dos subúrbios americanos, metódica e extremamente organizada, jornalista de meio expediente no jornal local, influente na comunidade e cheia de boas intenções, estas originadas por suas próprias verdades absolutas que, por sua vez, foram construídas a partir de uma bela gama de pré conceitos. Arrisco dizer que ela possivelmente se definiria como “conservadora na economia e liberal nos costumes”.
O mundo perfeito de Elena é abalado com chegada de Mia Warren e sua filha Pearl, respectivamente Kerry Washington (Scandal, Django Livre) e Lexi Underwood (Walk the Prank, Family Reunion). Previsivelmente, a artista plástica Mia representa toda a intensidade, flexibilidade e espontaneidade que Elena não consegue conceber. A artista nômade trabalha ao som de The Velvet Underground, ao lado de um cachimbo de maconha, e cria sua filha com uma visão progressista da vida. A relação entre as duas protagonistas se constrói de forma polida e, também de forma óbvia, baseada em segundas intenções. Enquanto Elena acredita estar fazendo uma caridade ao lhe alugar uma casa e lhe oferecer um emprego, Mia quer apenas evitar que a filha Pearl se deslumbre demais com o cotidiano da família rica e popular que as acolhe.
A fórmula da moda: Flashbacks
Ambientada no final dos anos 90, LFE segue a fórmula da moda: apresentar os personagens, seus dilemas morais e culturais e desenvolvê-los posteriormente, na forma de flashbacks, justificando assim as escolhas tomadas por cada um. A bela exceção a essa regra é Bill Richardson, o advogado casado com Elena, vivido por Joshua Jackson (Dawson’s Creek, Fringe, The Affair) que ganha profundidade no tempo presente da narrativa, a medida em que a trama ganha obscuridade. Os flashbacks se intensificam na segunda metade da série, justamente para explorar as escolhas que envolvem a maternidade de cada uma, tema que ganha destaque na narrativa. Vale uma menção honrosa aqui para o casting que selecionou duas atrizes primorosas para representar as protagonistas em suas respectivas juventudes.
Sem dúvida o melhor de LFE está no embate direto entre as duas protagonistas e no fascínio que cada uma exerce na filha da outra. Basta uma palavra mal colocada para estragar conversas honestas e promissoras e as duas atrizes brilham nessas ocasiões. O roteiro se faz valer da arte de Mia para confrontar as convicções de Elena – o papel de toda forma de arte – provocando-a, mostrando o lado monstruoso e irreconhecível de cada um, o que lhe é aterrorizante, repulsivo e estranho sobre si mesma. Também acerta em nos induzir habilmente a vários pequenos erros de julgamento
Little Flaws Everywhere
O problema é que esse mesmo roteiro tenta impor diálogos que não me lembro de existirem nos anos 90, principalmente quando falamos em empoderamento da mulher preta (posso estar errada pois não é meu lugar de fala). As respostas de Mia aos preconceitos “inconscientes” de Elena talvez não fossem tão contundentemente estruturados em 1997 mas isso não deixa de nos arrepiar. No livro – sim, a série é baseada na obra homônima de Celeste Ng – o fator racial não existe limitando os embates ao conflito de classes, mas a autora também foi produtora e co-roteirista da série e conversou bastante com Kerry Washington para reconstruir o perfil de Mia na adaptação. E, ainda assim, o conflito de classes segue potente na trama, com Mia buscando justiça para Bebe Chow (Lu Huang), sua colega trabalho e imigrante ilegal, contra a família da melhor amiga de Elena.
De certa forma, as falhas da série talvez acabem fazendo sentido justamente por tentar mostrar que o ser humano tão pouco é perfeito. A série ambiciona demais ao querer tratar de tantos assuntos profundos e complexos, como maternidade, racismo (e a crença do “não sou rascista”) e privilégios, sexualidade adolescente, adoção interracial e até a barriga de aluguel. Tudo seria um motivo para começar um “pequeno incêndio” e, mesmo assim, nenhum deles é aprofundado como merecia. Talvez tenha havido um excesso de sutileza – quando o que queríamos era ver o status quo ardendo em brasa ao som da excelente trilha noventista – mas pra mim foi suficiente visto que eu não consegui desgrudar os olhos da tela. O brasileiro, escaldado, prepararia um baldão de pipoca e facilmente mudaria o nome da série “Pega fogo, cabaré”.