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9.9Nota da Hybridoi
Votação do leitor 17 Votos
8.7

Um olhar aprofundado num ambiente tóxico

Se era pra sentir a radiação na pele, confesso que senti. A HBO nos apresentou um
deleite visual sobre o maior desastre nuclear que esta Terra já testemunhou. A minissérie
Chernobyl do criador e roteirista americano Craig Mazin – com apenas 5 episódios – atingiu um grau soberbo como um dos trabalhos mais imersivos sobre o tema.

A produção é tão tóxica no melhor sentido da palavra (se é que pode existir tal sentido) que irradia nos telespectadores a sensação de ter recebido ali uma maravilhosa obra-prima em termos de execução narrativa e ambientação. Mazin é responsável pelo apenas regular “Se beber, não case! Parte II”. Mas aqui ele vai longe contando com a ajuda do ótimo diretor sueco Johan Renck.

Episódios de “The walking dead” e de “Vikings” foram muito bem comandados pelo sueco. A trama intimista acompanha tudo que envolveu aquele fatídico 26 de abril de 1986, quando o reator número 4 da Estação de Energia Atômica de Chernobyl explodiu, e assim guiou o pior desastre nuclear da história. O drama, nada perto de um documentário, te aprisiona pela forma com que a HBO, Craig Mazin e Johan Renck executam o primoroso trabalho de pesquisa.

E mais: é ainda melhor a maneira como contam. Te colocam precisamente na cidade localizada ao norte da Ucrânia, que àquela época fazia parte da União Soviética. A explosão daquele reator fez com que a radiação equivalente a 400 bombas de Hiroshima fosse liberada. A minissérie também toma por base o livro “As vozes de Tchernóbil”, da escritora e jornalista bielorrussa – vencedora do prêmio Nobel – Svetlana Aleksiévitch. Craig Mazin utiliza os diversos e não tão precisos números do livro de Svetlana: estimativa de 93 mil mortos. Todos decorrentes de câncer.

Foram – no geral – cerca de 270 mil casos de algum câncer desenvolvidos a partir da explosão. A Academia Nacional de Ciências da Bielorrússia afirma que 2 bilhões de pessoas no planeta haviam sido atingidos pelo pó radioativo. No entanto, o número soviético oficial é de 31 mortos.
O intuito dos criadores Craig Mazin e Johan Renck é explorar a história do acidente, desde o início ocultado pelo sigilo soviético, por meio dos olhos de homens e mulheres que testemunharam aquele drama em primeira mão. A perfeita narrativa é angustiante e de certa forma bem convincente.

Este magistral thriller é mais aterrorizador que o próprio mito soviético. O modo pelo qual Mazin escreve facilita assertivamente nosso entendimento. E o roteiro – graças a atuações nada robóticas – nos guia para tal compreensão satisfatória. É como se os roteiristas soubessem do que gostaríamos de aprender, já imaginando o quão leigo somos sobre tal catástrofe.

Elementos narrativos

Os três esplêndidos atores principais da minissérie contam como a União Soviética escondeu o caso do restante do planeta. Jared Harris (The Crown) é o químico Valery Legasov, que existiu de fato, e aqui ele comanda todo o show. Após sua aparição chocante no primeiro minuto da produção, ele dá o tom de como a obra caminharia até a conclusão no julgamento final, voltando sempre ao dia do acidente com explicações perfeitas sobre a calamidade.

Legasov carrega um culpa gigante em seu semblante pelos 5 episódios. Legasov gravou inúmeras fitas com relatos precisos sobre o evento. Ele sabia bem o que houve com os erros nos
testes dos reatores. O conteúdo das fitas foi o ponto alto para desvendar bastante sobre um caso bem abafado pelos soviéticos.

Mikhail Gorbachev (David Dencik) é o líder que estava à frente da URSS e não respondia da maneira adequada a tudo que acontecia em Chernobyl. Ele envia Boris Scherbina, o vice-presidente do Conselho de Ministros, para ser a voz do governo em tudo que cercava Chernobyl. Gorbachev é quem coloca Valery e Scherbina provavelmente em uma missão que determinaria o rumo da vida da dupla.

Chernobyl apresenta bem os russos. Destaque total a Boris Scherbina – que começa num tom rude e vai mudando à medida que conhece melhor a tragédia – naquilo que foi talvez a melhor interpretação do marcante Stellan Skarsgard (Mama Mia). Ele teve a tarefa desumana de comandar – dentre outros – a evacuação inevitável e imediata da cidade de Pripyat, localizada bem perto da usina. Hoje a cidade ucraniana é considerada fantasma. Também comandou –chocantemente – as equipes de aniquilação dos já contaminados animais daquela região. “Os liquidadores”, como eram chamados, emocionaram o mundo com sua missão.

O pano de fundo era a Guerra Fria – que assolava o planeta – com demonstrações de poderes de dois lados: EUA x URSS. Obviamente que assumir o erro crasso dos fracassados testes diante da opinião pública não era jamais a intenção da poderosa União Soviética. Aqui entra a frase marcante do show na voz do personagem de Skarsgard – o Boris Scherbina, durante a investigação: “Esta é uma nação obcecada em não ser humilhada”.

A sempre boa Emily Watson (Embriagado de amor) dá vida a uma cientista que nunca existiu: Ulana Khomyuk. Ela representa o talento e a sagacidade de muitos cientistas que ajudaram na investigação. E que – de alguma forma – encorajaram Valery Legasov a revelar ao mundo tudo sobre aquele erro.

Chernobyl foi filmada na Lituânia, onde existem obras do aparato soviético até hoje. E lá pode-se observar o uso apenas de cores frias e bem lavadas. Elas dão o tom preciso da melancolia, do sofrimento e do distanciamento daquele povo em relação ao resto do planeta. A mistura entre tons de verde e cinza – praticamente sem vida – apontam o isolamento e a frieza com que o caso foi tratado à época pelos próprios líderes soviéticos.

A fidelidade visual do design de produção é impressionante. O design é tão grandioso que nos consegue mostrar tudo – em termos de parafernália – que existia na sala de controle central da usina e como aquilo funcionava. Mais uma vez o roteiro nos guia com números, doses precisas, nomes de elementos, nomes de procedimentos. E lá seguimos, compreendendo juntos devido à ótima qualidade narrativa. Destaque final para a maquiagem: tão agressiva e gráfica no marcante terceiro episódio. Há quem vire o rosto.

O alcance da minissérie

Para situar melhor o alcance desta minissérie, Chernobyl chegou ao topo do Imdb (Internet Movie Database) com a nota 9,6. O site funciona como uma enciclopédia virtual discorrendo sobre cinema e televisão. O Imdb pertence à empresa Amazon e avalia diversas obras num sistema rigoroso de notas. Até o dia 10 de junho de 2019, magníficas séries apareciam assim: Breaking Bad com 9,5; Sopranos com 9,2 e a recente Game of Thrones com 9,4.

Vale dizer que a própria Rússia emitiu elogios à obra da HBO. O grande jornal russo Izvestia crava que o nível de realismo obtido em Chernobyl chega a ser maior que filmes russos sobre tal época. Outro periódico do Kremlin, o Rossiyskaya Gazeta – por meio da jornalista Susanna Alperina (em várias entrevistas) – também aponta que não existem produções russas iguais a esta. Alperina conta que esta é uma obra justa e de alta qualidade sobre um tema bastante polêmico.

Um contraponto aos elogios, é que o diretor russo Alexei Muradov já prepara sua versão sobre o desastre. O canal NTV, da Rússia, mostrará esta produção. Ele discorrerá sobre teorias da conspiração e – inclusive – colocará espiões americanos em seu texto. A produção de Muradov não tem data para estrear.

Para aqueles que querem mergulhar (aqui pode) um pouco mais nisso tudo, o criador Craig Mazin indica obras que o fascinam e que serviram para que fosse criada sua narrativa em Chernobyl. As produções “Chernobyl – The Severe”, “8 Seconds from the disaster”, “The voice of Ljudmila” e o curta “Chernobyl 3828” são relatadas fielmente nesta minissérie da HBO. Resta então a nossos líderes terem o extremo cuidado com as mais de 450 usinas nucleares ativas espalhadas pelo planeta.

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