"Black Bird" (2022), de Dennis Lehane
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Onde: AppleTV+

 

Filmes e séries de True Crime, exibidos como drama, suspense ou como documentário, costumam despertar a mais íntima curiosidade do espectador. O ser humano é instigado por esse tipo de assunto. O professor de Comunicação da Universidade de Brasília e jornalista Paulo Paniago sempre disse em suas aulas que “gente gosta de ler gente”. Mas e quando lemos que “gente”, da vida real mesmo, matou sem escrúpulos ou cometeu as piores barbáries possíveis do ser primitivo? Queremos sim saber sobre o caso, sobre os motivos, o comportamento e os desfechos. O True Crime é um gênero que vasculha, investiga e fragmenta o crime verídico. Há o estilo ficcional e o real. O real é – por vezes – desgastante, penoso, chocante de ser revisto; mas, quando bem produzido, consegue ser extremamente instigante.

O psicólogo Ricardo Chagas conta que o fascínio pelo True Crime não é acaso. “Como em um jogo narrativo, o espectador deixa de apenas assistir ao caso e, de maneira lúdica, se transforma em um detetive. O criminoso apresentado também gera curiosidade, afinal, quanto mais horrível for o crime, mais chocante vai ser a reação do público”, ele assevera. E emenda que “assistir aos documentários não indica uma admiração ao criminoso, mas justamente o contrário: é uma representação de papéis. Você se torna o benfeitor em um cenário em que o objetivo é exterminar o mal supremo. Apesar de tudo, a mensagem final dessas obras é a de resolução, de dever cumprido”. O psicólogo é dono do canal “Minutos de Sanidade” no Youtube e no Spotify. Dentre vários assuntos da saúde mental, ele produz conteúdo com análises psicológicas de filmes, séries e personagens da cultura pop.

Breve intro de um gênero infalível 

Eis que a Apple, neste ano de 2022, produzindo muitas obras excelentes, trouxe no mês de julho a minissérie de 6 episódios “Black bird”, do excelente escritor Dennis Lehane. “Sobre Meninos e Lobos” (2003) e “Ilha do Medo” (2010) são dele, além de alguns episódios da aclamada série “The Wire” (2002-2008). O cara sabe montar, escrever e colocar na tela sua criação ou dar espaço a algum crime chocante de nosso cotidiano. Aqui em “Black Bird”, Lehane conta o famoso e perturbador caso do assassino em série Larry Hall. Fato notório de um monstro que – pelas contas do FBI – matou cerca de 40 mulheres jovens em meados da década de 80 e início dos anos 90, nas redondezas do estado de Indiana nos EUA.

O gênero é cercado de depoimentos e investigações – em sua maioria – numa ótica que o público não conhecia ou que pode ser revisitada por um novo ponto de vista. Ainda assim, conseguem ser originais. Quando uma bela equipe de montagem sabe bem organizar os diversos arquivos, entrevistas, áudios, imagens de tribunais, todo o processo de produção de um crime pode se tornar uma obra memorável. Normalmente tal gênero consegue boa aceitação, mesmo com a dificuldade de ser visto em certos casos reais, como o “Pacto Brutal” (2022), da Hbomax, que narra o assassinato da famosa atriz brasileira, Daniella Perez. Ali, algumas fotos e relatos foram evitados por quem se lembrava de maneira fotográfica do episódio em dezembro de 1992. Isso pode acontecer devido ao trabalho já citado aqui: produção e montagem. Às vezes, é intencional. O choque e o desconforto servem inclusive para dar algum tipo de encerramento ao evento e para buscar alguma justiça não obtida ou ainda conquistar uma visão que preserve a vítima, como foi o caso de Daniella.

Uma das coisas que mais despertam atenção é o fato de que o público quer e necessita sempre resolver o caso, ou buscar uma justiça para o evento, mesmo que ele jamais tenha tido solução suficiente ou satisfatória. Quando os criminosos da vida real ainda estão na prisão ou tiveram algo como um julgamento exemplar (para alguns juristas, mídia ou sociedade), há realizadores que lhes dão tela e fala, mas quando estão em liberdade – talvez por um procedimento não satisfatório ao senso comum – muitas vezes, acertadamente, não ganham espaço. A série “Mindhunter” (2017-2019) executa bem tal princípio.

Agora dentro das mentes Black Bird

A minissérie acompanha de perto a vida pregressa e repleta de excessos do traficante Jimmy Keene. Numa cena linda, Keene vai preso pelo FBI por tráfico de drogas e porte ilegal de armas, muitas armas. Ao ser detido, o sujeito que já foi um bom jogador de futebol no ensino médio, é forçado a aceitar um acordo imaginando ter sua pena diminuída. Devaneio. Ele pega 10 anos de cadeia.

Taron Egerton é Keene. Seu maior papel em tela de fato. Versatilidade gigante em tela para o cara que interpretou Elton John no cinema. A Keene é ofertado pela promotoria aquilo que vai mover a série. Caso consiga que o suposto brutal assassino em série, Larry Hall, faça uma confissão sobre onde teria enterrado um corpo, ele será um homem livre. Para isso, ele precisa aceitar se troca de prisão. Para uma bem mais sinistra que aquela em que já encontrava. No show, vale destacar que a prisão para qual Jimmy iria poderia ter sido mais bizarra do que a aquilo que foi anunciado. A obra é baseada no livro autobiográfico de Keene.

Somos sempre brindados pela formidável atuação da dupla Paul Walter Hauser e Taron Egerton. Além das maravilhosas aparições do falecido Ray Liotta em sua última produção. Emocionante, vibrante e memorável, Liotta faz o policial pai de Keene. Amor e devoção pelo filho brotam na superfície. Tais atuações e tendo visto a série por dentro da cadeia (mais pelos olhos de Keene) e não muito pelo olhar do FBI fazem com que o criador Dennis Lehane provoque a discussão muito profunda sobre a crueldade ou não de todos os que são bandidos. São todos iguais? Vale dizer que o personagem de Hauser é uma pedra de difícil argumentação. Há algo estranho ali naquela personalidade obscura e impenetrável.

O 5º episódio do show já mostrava Larry e Jimmy bem afiados em seus discursos e arquétipos. Enquanto Larry vai produzindo conteúdos que o grifam como dissimulado, como quem sabe e tem assertiva ciência do que fala; é possível ver a redenção do personagem de Egerton surgindo para si ao final desse mesmo 5º episódio, num choro, num choque revelador. Larry entende tudo que Jimmy tenta impor-lhe (ou ludibriar-lhe, com certa razão). Ainda que pela ótica do presidiário Jimmy, já no 6º e último, somos contemplados com um dos maiores diálogos de séries deste ano. Egerton e Hauser: imersão total.

Dolorosa conclusão

É intrigante como ambos constroem seus personagens. Uma aula de humanidade que foge da atuação automática e de tão real que é nos faz embarcar na emoção de Egerton frente à monstruosidade observada (como o próprio ator embarcou). Jimmy, ao narrar a história, tem sua realidade e verdade a serem compradas pelo público julgador. E é maravilhoso quando nos damos conta de que ele está nos convencendo. De certa forma, os meio são bons: temos o livro base, os depoimentos variados ao FBI e também o uso do polígrafo para cravar o asseverado no desfecho da série.

“Ele usou dois cintos”. FBI e Jimmy conversando sobre um provável insucesso é um ato derradeiro de redenção, de expiação e de libertação de pecado. Tocante como se encerra obra. Ao revermos o arco das vítimas Tricia Reitler e de Jessica Roach, seguimos entregues à comovente atuação do grande Taron Egerton. E desprezíveis detalhes são revelados. Ator e ser humano mesclados em lágrimas. E, para ele, é “como se tivesse deixado um inferno para trás”. Notório. Assim, a série conclui num nível elevado de produção. Subverte o gênero: não nos facilita em sua verídica conclusão. Mas tem êxito em apresentar certos tipos de compensação, como na fala da juíza ou mesmo no desprendimento do irmão gêmeo de Larry Hall. E é bom pontuar: as meninas citadas e suas famílias são respeitadas pela narrativa de Lehane e pela escolha do roteiro. Por mais conteúdos assim, Apple.