"Um herói" (2021), de Asghar Farhadi
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9.6

Onde: Cinemas

 

Sabe um diretor que praticamente não tem produção ruim em sua filmografia? É o iraniano Asghar Farhadi. O cineasta é dono de obras fantásticas, como “A Separação” (2011), vencedor do Oscar de melhor filme internacional, e “O apartamento” (2016), que possuem textos inteligentes e intrigantes escritos por ele. Uma marca registrada de Farhadi é a apresentação exaustiva e gradativa de obstáculos pequenos que necessitam de resoluções justas e imediatas, envolvendo decisões morais e éticas. Mas tais decisões de suas obras seriam justas pra quem? Os conflitos sucessivos estão presente aqui em “um Herói” e desafiam o público a testar seu senso de justiça. O que se sabe é que a justiça criada pelo espectador sempre será claudicante, perplexa e imprecisa. Como todos os personagens de seus trabalhos. Todos.

O diretor emula em sua audiência o debate interminável e cansativo da busca pelo justo e correto. E, quando põe sua marca registrada em alguns quadros com a câmera estática após a conclusão de algum texto, alguma encenação, com os personagens agora calados, com o cenário frio todo à mostra, o som ambiente da civilização falando mais alto; é o momento exato em que ele quer nossa opinião. Ele quer nossa interação. E Farhadi faz isso incontáveis vezes. Somos chacoalhados por ele no intuito de resolver (como juízes mesmo) cada quadro da película e seu problema cotidiano ali mostrado.

Aqui seguimos Rahim, um sujeito que apresenta os maneirismos da bondade e que está preso por causa de uma dívida financeira. Ele pediu dinheiro emprestado a um sócio e não conseguiu pagar, desonrando assim seu credor e sua família. Numa licença de dois dias fornecida pela Justiça, o vagaroso Rahim se agita e mobiliza seus parentes e sua namorada a fim de persuadir seu credor para que perdoasse ou diminuísse tal dívida. E a excelente atuação de Amir Jadidi nos dá um Rahim imensamente magnético e cativante. Ele se mostra singelo, pálido, num tom sempre humilde de quem passa frequentemente credibilidade.

Amir Jadidi traz um senso de humanidade pleno ao Rahim da obra. Atuação impecável. Aqui está um dos desafios do roteiro. Ao mesmo tempo que Rahim é esse ser crível, que nos prende logo abruptamente, os obstáculos que surgem em tela de maneira gradativa vão nos trazendo algum tipo de desconfiança para com ele. Principalmente quando somos apresentados a uma bolsa cheia de moedas valiosas. Tal bolsa se torna a válvula que expande o filme. Se o valor corruptor apresentado ali fosse necessário para um fim, como seria a sustentação da primeira verdade (ou meia verdade) contada na obra?

A lente de Farhadi mostra um cinema realístico e amplo

A capacidade que Farhadi tem de envolver essencialmente todas as pessoas de seu filme é única. Com isso, ele consegue dar textura a diversos núcleos e personagens. Como dito, faz isso em todas as suas obras. E, quando assim o faz com o elenco secundário, é possível extrair do espectador mais envolvimento. Mais respostas. Isso porque fatalmente conseguimos comprar todas as verdades e realidades daquela história. E, ainda assim, ficamos balançados tentando observar a busca de todos ali por honra e liberdade.

Toda sua crítica social de “Um Herói” foi construída lentamente com uma precisão imensa e fácil de ser degustada. Reitera-se que câmera estática é soberba ao exibir algumas prisões iranianas assépticas como um local bem diferente daquilo que imaginaríamos como o cárcere. Ele foca mesmo no paralelo da figura mais punitiva: as redes sociais e a imprensa. O interesse é mostrar como a verdade apresentada por Rahim pode ser rebatida facilmente pela grande rede e por parte da mídia de forma veloz, podendo fazê-lo sofrer achincalhamento social, além de sobrar crítica negativa para as instituições de caridade e para as prisões. E aqui, todo o simbolismo que envolve a defesa da honra das instituições sociais vem à tela num recorte extremamente assertivo. Cada núcleo apresenta sua realidade, seu ego e sua defesa.

A montagem perfeita da obra aqui concatena a trama frequentemente reverberando a “meia verdade” contada no quadro anterior. O resultado disso é o conflito emaranhado de consequências intermináveis. Angustiante. Nas demandadas decisões em situações simples, de forma psicanalítica, é suficiente que nos coloquemos no local daquele que agiu. E, assim, não há a presença de um vilão. Tanto que o suposto antagonista da obra tem sua verdade também e somos empáticos também com esse plot. Muitas vezes, a vida mundana não vai nos deixar prosperar, vai dificultar nossa “bondade”.

“Um herói” é uma aula de diálogos crus e de resoluções (sim, há resoluções) de conflitos que beiram o sufoco para suas figuras centrais quando vamos nos distanciando de convergências. Aula de vida real. Vale ser visto mais vezes. A dramaturgia de Farhadi mexe com nosso quotidiano. O exercício frequente da conversa franca, resiliente, aberta e justa deve ser praticado à exaustão. Que tentemos. Não precisa ser na perfeição das palavras escolhidas pelo iraniano, mas que sigamos tentando ser como seus personagens.